sábado, 9 de agosto de 2008

E.T.

Esta é uma história que começa a meio. Olhando para o passado, temos um homem que agora está nos seus vinte e poucos anos, e que era conhecido por não ser dos melhores filhos que Bolama já viu nascer. Segundo o que por aqui se diz, o que era dos outros nem sempre era visto dessa forma por ele, e quanto às suas intenções, parece que nem sempre cursavam pelos melhores caminhos. Independentemente da religião que cada um professe, aqui são todos animistas. Quando este jovem ficou doente, todos concluíram ser de elementar justiça, e provável resultado de um bruxedo lançado por uma vítima das suas acções. Fome e sede insaciáveis, urina a toda a hora, letargia, perda de peso e de força, um quadro (clínico para nós, mágico para outros) que, convenhamos, só podia confirmar a tese de bruxedo. Por consequência, foi deixado mais ou menos ao abandono, com incondicional e natural excepção da mãe, uma velhota cega e também dependente. Não sei bem quanto tempo se degradou assim, mas acho que foi o Fernando (meu predecessor) que o apanhou e teve um doce pensamento que o enviou para Bissau. Lá se conseguiu arranjar maneira (forma como tudo se faz aqui) de investigá-lo em Bissau – é preciso ver que não há segurança social, pelo que os doentes têm que pagar tudo à unidade, o que, em abono da verdade, para quem tem que pedir emprestado para pagar os 3 euros da canoa para Bissau, não é tarefa simples. Mas lá se fez, e não restaram dúvidas: a feitiçaria respondia por um nome – Diabetes Mellitus – e foi tão mal ou tão bem feita, que afectou milhões de pessoas em todo o mundo que não eram, por princípio, visadas: e tudo por um feiticeiro da Guiné! “Posto isto”,

expressão que uma conhecida professora com um conhecido peito nos Açores usava depois de ajeitar o dito quando se sentava à secretária, no início das suas aulas

“posto isto”, dizia, seguiu-se a primeira dúvida existencial: um doente que não tem para comer, menos tem para comprar Insulina. O crescente desespero quase conseguiu que se desistisse deste doente. Não há sustentabilidade nenhuma, ele como está não vai conseguir trabalhar, ninguém pode ou quer ajudar, nada a fazer. Sei que foi uma insistência da Diana, regada com muito choro dos dois, que enviou de novo este homem a Bissau. A AIDA (agência da cooperação espanhola que faz um trabalho notável no Hospital Simão Mendes, em Bissau) conseguiu oferecer insulina de libertação prolongada para início de terapêutica e o jovem voltou à terra natal. Aqui perco o fio à meada, mas sei que, quando o conheci, estava internado há 3 meses no hospital de Bolama (rotineiramente escrevo Hospital com H maiúsculo, mas este de Hospital só tem o mesmo o nome e os doentes). Mesmo com um diagnóstico, o espectro do bruxedo não desapareceu, e por um motivo ou por outro, acabou outra vez sozinho com a mãe, cadavérico, imóvel, em pele e osso. A Insulina, dividida em duas tomas diárias, era dada pelos enfermeiros de manhã, sendo que a da noite era a maior parte das vezes omitida, já que o frigorífico onde se conserva o fármaco estava fechado (o responsável não dá a chave a todos os enfermeiros) e muitas vezes não havia mesmo enfermeiro nenhum. O registo de glicémia capilar – a concentração de “açúcar” no sangue, parâmetro essencial em todos os diabéticos – apontava o valor de 136 mg/dL em 23 dias diferentes, a maior parte deles consecutivos. Pelo meio aparece um valor de 472, o que me garante que nesse dia, sim, foi efectuada uma medição. As unidades de Insulina administradas, fosse qual fosse a medição de glicémia, comesse ou não comesse, eram invariavelmente 30. Preocupados com a situação e cansados de tanta negligência, decidimos transferir a Insulina para a nossa casa, já que o frigorífico a gás tinha voltado a funcionar. No Hospital ficaram de tal forma radiantes, que espontaneamente nos trouxeram a Insulina a casa e (viemos a saber mais tarde) chutaram o nosso doente para casa. A descrição do dia-a-dia posterior seria por demais cansativa, e a história agora só não perde interesse, porque, num misto anti-bruxedo de endocrinologia e de reabilitação, este jovem começou a melhorar. Progressivamente, começou a ganhar peso, força e a conseguir largar os paus de apoio axilar que razoavelmente faziam as vezes de muletas. A esta data, faz a administração de Insulina autonomamente, e nós vamos controlando a glicémia e ajustando a dose. E isto tem tem alguma coisa que se lhe diga, num diabético que só come arroz, mas que, de vez em quando, só tem peixe ou mesmo nada para comer - nos dias em que se atrasa, fico com o coração nas mãos, a achar que o matei de hipoglicémia num canto qualquer. Enfim. Dá que pensar. Não sei o que o futuro vai ser, mas, para já, adiou-se o inevitável desfecho por uma insistência meramente pessoal.

Do ponto de vista social e moral, esta história assume, quanto a mim, um contorno bem mais interessante (quiçá mais discutível) do que o puro aspecto clínico. Estou certo de que não será só na Guiné que se possa pensar que um malfeitor não merece a mesma atenção do que outra pessoa (curiosamente, em Kriol, pecadur) na mesma necessidade. E em Bolama pensa-se isso. Ao fim e ao cabo, porque é que pegámos neste caso, quando há tantos outros no hospital que também precisam de atenção? Porque é que metemos este homem a ser tratado na nossa casa, privilégio que tantos outros "bons pecadores" queriam? Porque é que deixámos as crianças que estão no hospital à sorte daqueles enfermeiros? Eu sei a resposta da AMI, e sei o que jurei fazer antes de iniciar a minha prática clínica. Cada um se imagine nesta posição e dê a sua resposta. Na eventualidade de a perspectiva clínica deixar dúvidas, de não ser suficiente, acrescento um pormenor de fé pessoal: ao longo da vida, disciplinei-me a julgar o acto e não a pessoa. Sendo verdade que muitas vezes escorrego, tendo a pensar que um roubo é mau, mas não faz necessariamente do autor um ladrão. Não tenho a ingenuidade de pensar que este homem mudou, muito menos por aí passa a intenção de o tratar. Trato-o só porque está doente, mais nada. E não me interessa se vai voltar a roubar ou não – em rigor, porquanto não me roube a bicicleta, é-me indiferente. Ainda assim, despindo a bata (aqui, uma t-shirt que diz AMI) e pensado como o pecador que sou, tenho a sincera impressão de que a dependência transforma as pessoas. Para melhor ou para pior, isso já não sei. Mas o benefício da dúvida, esse, no meio das tantas conversas que com ele tenho tido (vem duas vezes por dia cá a casa, não resisto a papiá), já o dei há muito tempo. Numa das minhas idas ao hospital, vários dias depois deste doente sair de lá, ao cumprimentar os presentes no alpendre com um “Boa tarde” geral, esta velha magra, desdentada, sem um olho e com o outro opacificado em branco e azul (lembra mesmo o sabão), com um lenço azul na cabeça e um vestido guineense em verde-garrido, levantou-se, com as mãos secas e enrugadas estendidas, uma para a parede e outra para a origem do som, e começou a arriscar o passo na minha direcção: - “Luís?” Encontrando a minha mão na sua escuridão, abraçou-me longamente, e sussurrou, sem dar mostras de me querer largar: “obrigado, obrigado, obrigado...”*. Embora existam estas pequenas coisas que de forma duvidosa nos podem lavar a alma, não se pense que foi o reconhecimento que me causou impressão ou felicidade, porque o trabalho foi feito pelo objectivo em si. Só por si, um trabalho bem feito só pode dar satisfação. Simplesmente, só naquela altura parei para pensar no que estava a ser feito, e no impacto emocional e – não menosprezemos – social que a recuperação do filho tinha naquela mulher. Até ali, só tinha pensado no nosso doente. O reconhecimento é naturalmente – e desejavelmente – dispensável. O facto de nos termos sentido úteis, não. Mesmo que me julguem mal os de Bolama ou de outro sítio qualquer.

Tudo arrumado, só me resta uma questão:

O que se fará quando a Insulina acabar?

* Foi dito mesmo assim, e por isso escrevi tal como foi. No entanto, pela defesa do Português, não resisto a acrescentar que a expressão, do particípio passado do verbo obrigar (de ficar obrigado perante uma pessoa), concorda em género e em número com o sujeito; assim sendo, a velhota, se quisesse dizer alguma coisa, devia ter dito “obrigadA”. E pronto, está dito. Mas, sinceramente, isto é que é exigência: a mulher agradece, e eu ainda corrijo! Há tipos mesmo desagradáveis, co’a breca! Tenham paciência comigo, é o que vos peço. Muito obrigado. Com O no fim.

1 comentário:

Anónimo disse...

"Obrigado fui eu!!!" ;)

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