segunda-feira, 8 de setembro de 2008

Pedido difícil

Só o título já assusta, e este é de facto um pedido ambicioso. Os meus amigos deram tal resposta ao pedido anterior, que eu respondo subindo a parada! Já lá chegamos. Antes quero falar do destinatário. Alfa de nome próprio, Tio de tratamento por respeito e carinho, é um homem-grande, um antigo combatente do exército português na Guerra Colonial, a quem o Estado Português fez o favor de esquecer essa penosa contribuição. Tem 67 anos, e trabalha para sobreviver com 100 euros mensais num estado sem segurança social (economizar para a reforma?). Estava no outro dia à conversa com ele em frente à sua casa coberta de colmo – quando chega a época das chuvas, este Senhor fica com a casa inundada – e perguntei-lhe quanto custava pôr um telhado em folhas de zinco. As contas eram difíceis: cerca de 220 folhas, a 3,5 euros por folha (arredondamento por baixo de 2500 francos cfa), o que dá cerca de 770 euros. Dá que pensar, uma pessoa trabalhar uma vida toda e não conseguir juntar 770 euros para poder dormir em seco... Na minha utopia, e sem saber (continuo assim) no que me estava a meter, perguntei-lhe o que ele achava de eu perguntar em Portugal se havia alguma maneira de lhe pôr um telhado na casa – ele respondeu:

- “Deus ilumine o Luís”.

E assim começa o desafio. Deixo aos meus benévolos amigos a possibilidade de me ajudarem a dar uma velhice com cama seca ao Tio Alfa. Dei várias voltas à cabeça, e acho que a forma mais simples e fácil é mesmo cada um dar as folhas de zinco que entender:

1 folha de zinco – 3,5 euro
Queremos chegar às 220!

Eu e o Tio Alfa ajustaremos o caminho que ficar por fazer para as 220. Não se acanhe quem só puder dar uma! O objectivo é ambicioso, e toda a ajuda, mesmo pequena, conta. Mais uma vez, peço que deixem aqui escrito o número de folhas de zinco que quiserem dar.
A próxima emissária vem a 27 de Setembro, data que calculo muito próxima para tão difícil objectivo, mas já pode adiantar qualquer coisa. Responde pela graça de Sara Prado (lixei-te, pirata!), e pode receber correspondência em

Azinhaga da Cidade, Bloco A1, 3ºC
Parque do Lumiar
1750-063 Lisboa.

Mais uma vez, sou eu quem garante o câmbio local, a compra das folhas de zinco e que as mesmas são postas no telhado do Tio Alfa. Obrigado por me deixarem pensar que talvez seja possível.

sábado, 6 de setembro de 2008

Não é de agora...

Aos meus Pais e à Sara, os que tudo me aturam.

Sobrenomenclatura

- E como é que te chamas?
- Pinto da Gama.
- Ena pá, sim senhor! E o teu primeiro nome, qual é?
- Pinto.

Benfica-Porto

Fui ontem com a Marta, a Daniela e o Tcherno ver a transmissão directa do Benfica-Porto, extraordinaríssimo programa de fim de tarde de sábado. Fomos guiados pelo Tcherno até à Estrada Grande – que ao nome corresponde na dimensão das árvore s que bilateralmente a definem – e parámos numa casa argilosamente igual às outras, com excepção da parabólica instalada na fachada principal, chocante marco do vigésimo século numa terra que vive na Pré-História (mas com telemóveis), apontado para um satélite de cuja existência a realidade local até a mim faz duvidar. Ainda não sabia deste ramo de negócio em Bolama, mas parece que o dono da casa faz vida das sessões de televisão, que são pagas pelos espectadores a 100 fcfa (cerca de 15 cêntimos). Na óptica da transversalidade da natureza humana, ainda antes do jogo, tivemos que assistir a uma manifestação das mulheres locais, em fúria por haver futebol em vez da habitual telenovela, e que por irem todos os dias deviam ter mais direitos do que os homens sobre a televisão. Dispersada a concentração feminina, cerca de 5 minutos antes do jogo, ligou-se o gerador, e as pessoas começaram a entrar na sala: tudo escuro, bancos corridos de um lado e de outro com um corredor perpendicular a meio, uma televisão num altar lá à frente, uma coluna hi-fi no coro, e a águia Vitória a sobrevoar as bancadas dessa longínqua Catedral, levando as cerca de 70 pessoas presentes ao delírio. A impressão inicial foi de todo inesperada, mas disso já falo. A actividade durante o jogo foi igual à de qualquer reunião de pessoas para ver futebol, exceptuando tudo o resto. A meio da primeira parte, irritado como nós pelo penalty não marcado a favor do Benfica, um fulano de barba grisalha apertou o fiscal de linha pelo pescoço, o que deixou a multidão local sem ar de tanto rir:

– “Agora posso dizer que vi UM branco doido!” – gargalhou o Tcherno sem acreditar.

As pessoas formaram nova fila para sair da sala ao intervalo, e o dono do espaço posicionou-se à saída para entregar um papelinho branco que garantia a reentrada a cada um dos presentes. Chegada a minha vez, abri a mão, ele recolheu o braço, ao que eu perguntei:

- Eu não preciso de papelinho?
- Não, eu lembro-me!

Rimos até mais não, sem serem precisas mais explicações – para quê? Enfim, todo o acontecimento roçou o surreal, e por isso mesmo foi sensacional (isso se não contarmos com o desempenho e o resultado). Mas agora recordo o que senti assim que aquela televisão se ligou, verdadeira porta aberta para outra dimensão. E por ter sido uma experiência mais ou menos normal no passado recente (o de Lisboa), não fiz qualquer preparação para ver o jogo, era só um jogo do Benfica, no bem conhecido Estádio da Luz, tinha mais que ver estar a meditar sobre tão desinteressante assunto. Só não contei com o facto de já aqui estar há 2 meses, e não fazia ideia do que isso já tinha mudado em mim – ao ver aquela colossal construção e as bancadas cobertas de quase sessenta mil pessoas, vestidas, calçadas, cheias de clubísticos apetrechos, iluminadas pela imensa luz eléctrica, a relva verde e uniformemente aparada no campo, os polícias fardados, de escudos, capacetes e viseiras, o fumo, as bandeiras e o fogo coloridos, não pude acreditar: “aquilo não existe neste planeta, não pode ser, tem que ser noutro sítio qualquer”. Não me perdia da ideia de um povo distante da Guerra das Estrelas reunido numa cerimónia planetária para decidir o futuro da galáxia. Foi avassalador, e fez-me sentir no imediato a razão de o Benfica ser aqui visto como uma entidade semi-divina. Sim, havia 4 adeptos do Porto na sala, mas não é de clubismo que estou falando: o Estádio da Luz, visto do meio do mato bolamense à luz eléctrica de um pequeno gerador a diesel, local perdido de uma perdida ilha do segundo país mais pobre do mundo, não parece real. Eu que lá estive tantas vezes, não consigo acreditar. Não existe.

Found in translation

- Mustafá: como é que se chamam os filhos das galinhas em Kriol?
- Os filhos das galinhas? Quais filhos das galinhas?
- Do animal, não é da ilha! A galinha quando é pequena...
- Não sei se percebo bem...
- Ó homem, aqueles bichos ali atrás da galinha que é mãe deles!
- O quê: pintainhos?
- Ora bolas...

Living on the edge


Fotografias soltas II











Fim do dia

Na tentativa de regressar a Bolama no próprio dia, chegámos já quase de noite ao canal que separa São João da ilha, depois de quase 100 consultas. Para desmotivação geral, o Bouli já tinha partido na última travessia do dia, pelo que teríamos que inventar outra coisa. Sentados a ver Bolama do outro lado e a pensar no que fazer, avistámos a piroga do Bouli a regressar a golpes de remo perdidos na corrente, ainda com os passageiros todos bordo, a rasar a deriva. Com a corrente da maré vazia falharam o cais da partida por uma centena de metros, mas a terra firme chegaram. O motor tinha-se constipado com a água que entrou no depósito de combustível, facto de estranhar, numa canoa escavada em peça única num tronco de embondeiro, que mete água em tal permanência que existe um “funcionário” só para tirar água durante o percurso, bomba de extracção a aroz e mafé. Fomos desencantar outro motor e outro depósito dentro da Tabanka de São João, e assistimos de bancada à montagem dos mesmos. Para alegria dos presentes, o motor pegou ao segundo ou terceiro puxão, e o embarque recomeçou. Já de noite passei a mochila e as duas galinhas penduradas pelos pés, e um dos quase-náufragos da primeira viagem ligou um rádio, de onde fluiu um feliz e apropriado Bob Marley: iluminados pela lua cheia que surgia entre as nuvens, debaixo da chuva miúda que agora começava, seguimos exaustos na direcção das ténues luzes de Bolama, “singing don’t worry about a thing/ ‘cause every little thing/is gonna be alright...”...

Berne III

Isto dos bichos não acaba aqui, que não fui só eu! A tarde foi bem passada – na lógica do bife ensanguentado de casa de pasto de esquina, mal passada – em pequenas mas desafiantes cirurgias: a Diana com um corte de ostra camuflada no lodo no pé, o Tcherno com um corte de lâmina escondida no bolso da roupa que lavava na mão, a Marta e eu com descendência de insectos na pele. Segundo a sorridente Fatumata, que ouvia o queixume geral com maternal naturalidade, “é assim, época da chuva... Penso.”.

Berne II

E eu que de ocidentalmente positivo achava que isso da feitiçaria era um cambalacho dos crédulos, tive hoje direito a uma cabal demonstração: depois de ter sido picado durante a consulta em Madina – o que me obrigou a fugir da doente para me despir – e de ter incubado durante três ou quatro dias, fui hoje brindado com a excisão da minha própria pele de quatro brancos ovos de insecto, que se preparavam para eclodir no meu calor, comer e crescer na minha gordura, para depois originar felizes crianças voadoras com antenas. Nunca mais brinco com a velha maluca. Logo eu, que nunca pensei ser mãe.

Marisco vacum




Eu só acreditei depois de ver, tal como a história do porco a andar de bicicleta. Ainda tenho dificuldade em aceitar, mas o facto é que estas “senhoras” estão pacientemente à espera de que a maré vaze, para depois esgravatarem o fundo do mar em seco à caça de caranguejo. Mais: se houver dúvidas quanto ao horário da maré, é só espreitar o comportamento das vacas locais, que em manada se juntam para se dirigirem à praia mesmo antes da maré começar a vazar. Fabuloso.

Macaquices

Já ficou entendido que fui gloriosamente precedido na representação dos Açores em Bolama pelo meu querido Amigo Henrique Cabral: que honra, e que peso (abraço, Companheiro!)! Saindo da anterior conturbada consulta, parámos como de costume o jeep no meio da estrada de macadame (não passa ninguém), a meio caminho da Tabanka seguinte, no caso Berculom, para comermos as sandes preparadas de manhã pela Fatu, acompanhadas pelo belíssimo Foster Clark’s, esse Tang laranja da Guiné. Ainda antes de o fazermos, o Mustafá, farto como eu das coisas rasteiras da vida, começou a subir desenfreadamente as árvores de caju. Vendo ali uma brilhante ideia, fiz uma rápida imitação, carregando na mente e no sorriso a feliz infância nas matas e abrigos das Capelas, e escalei veloz na árvore do lado uns substanciais metros a mais que o Mustafá, que me perdeu de vista. Perguntou por mim aos longínquos seres terrestres, que lá de baixo me apontaram. Procurou, procurou, procurou, e ao encontrar-me na ramagem, incrédulo, mudando de árvore para me alcançar no topo, exclamou numa gargalhada:

- “Como eu gosto dos Açores!”

http://www.youtube.com/watch?v=Rg-p2dADeM4

Naturalidades

Estava em intervalo de consulta no alpendre de trás da Unidade de Gã-Thongo, numa empolgada cavaqueira com o Agente de Saúde local sobre as também locais dificuldades, o papel dele no meio disto tudo, “e não perguntes o que a Guiné pode fazer por ti, pergunta o que podes fazer pela Guiné”, seguindo entusiasmado na filosofia importada barata (ou do preço que aqui se pode pagar), quando o meu interlocutor, durante o meu discurso e de descontraída forma, esticou o seu braço na minha direcção e meteu o indicador na minha orelha, esgravatando o canal auditivo externo:

- “Casca no ouvido.”.

Ainda tentei continuar, mas a moral, essa, já tinha sido barbaramente aniquilada...

Mancarra

Nada nos prepara para as consultas no meio do mato, porquanto a criatividade é a arma essencial. A inexequibilidade da maior parte das soluções adquiridas ao longo dos últimos 11 anos nos Hospitais portugueses, temivelmente associada à minha própria ignorância, confere à consulta local um estatuto de verdadeiro trapézio sem rede.

“Não diminui em naaaada o seu valor”, opina preocupada e repetidamente a minha Avó acerca dos trapezistas com rede no circo, a tal ponto que me faz em maldosas vezes dizê-lo em cima da deixa antes que ela o consiga: “justamente o que eu costumo dizer”!

Completamente de acordo. Até acho que a ausência de rede aqui só diminui o nosso valor, mas adiante. Estava fazendo consulta em Gã-Thongo, para lá de Nova Sintra, na região de São João, parte continental integrante da Região Sanitária de Bolama, quando entram pai e filha de 3 anos no desmobilado gabinete cimentado, Salāmu `Alaykum, Alaykum Salāmu e a minha filha pôs um grão de mancarra no nariz há uma semana.

Mancarra é amendoim, e lê-se “mancara”, no raciocínio em sentido oposto implícito no facto de escreverem arroz com um só R.

“Ora aí está uma coisa que eu nunca fiz”. Ficou para o fim das consultas, até porque não se pretendia desmotivar as outras crianças presentes. Chegada a altura, olhando para dentro do pequenino orifício deste nariz esborrachado de preta de 3 anos, estava realmente uma coisa branca encravada no corneto inferior. A primeira e infeliz ideia foi agarrar a miúda como se a fôssemos esquartejar, e, veja-se o perigo da coisa, ver se aquilo sangrava com uma longa agulha intra-muscular (rica ideia, não foi?). Sangrar sangrou, mas só o lábio superior quando a agulha saída do nariz lá aterrou depois da vítima se mexer. Danos colaterais, prossiga o programa. Entre “já chega”, uns safanões e “eu morro”, conseguimos descolar aquilo, imprimindo à notícia a euforia de quem anuncia o sexo da criança recém-nascida: “é um amendoim”! A Marta sugeriu que “se partíssemos uma espátula, não era melhor”? E realmente não foi nada mal pensado. Mas tirar o amendoim, coisa boa, está quieto. A sala enchia-se dos amadores da saúde local, que contemplavam o espectáculo como quem come pipocas e sorve coca-cola por uma palhinha, comentando as peripécias em cena e incentivando carrascos e vítima. Transpirado e de quarto de espátula ensanguentada na mão enluvada, só me lembrava do saudoso Fernando Pessa num célebre apanhado seu, dirigindo à rapaziada que o impedia de fazer a reportagem em condições um rabugento

“Vá tudo lá pra trás, porra!”
(e esta, hem?)

Não sei por que milagre, mas alguém descobriu uma pinça ferrugenta nas caixas de medicação. “Enfim, um instrumento”! Sim, a ferrugem aqui era já um facto perfeitamente indiferente. A Diana, deitada de costas em cima da mesa de consulta, segurou a miúda contra si, de forma a que a mesma olhasse para o chão por cima do seu ombro. A Marta e os restantes distribuiram-se pelas partes móveis do corpo da vítima, segurando como podiam, a Daniela segurou a luz, e eu deitei-me no chão de braços estendidos para aquele nariz sobranceiro, à laia de mecânico que contempla por baixo a junta da biela do escape (“é sempre a junta da biela do escape”, diz o meu Amigo Flip). A dita pinça, de tal forma desproporcionada, só de entrar ocluía todo o ângulo de visão, e fazia oscilar como um sismógrafo em plena actividade as narinas daquele ser que corria a Diana à biqueirada ventral. Ainda assim, sentindo que, ao prender qualquer coisa, a pinça não fechava, e já com aquele nariz a ameaçar um ranhoso pingo de sangue, a medo puxei. As palmas ecoaram na pequena sala:

- “Ao ver sair o amendoim, foi o mesmo sentimento que tive quando vi o primeiro bébé a nascer...” – desabafou sorridente a Daniela.

Sem querer exagerar, confesso até que o que senti no alívio não andou muito longe disso – no bom medicinal Português, foi uma distócia...

Antibioterapia

O nosso alvo é um murganho camuflado no meio de uma imensa horta. Pelo sim pelo não, vai comer com Napalm. Se a horta sobreviver, objectivo conseguido.

Simbioses


Não sei se é mutualismo, comensalismo ou parasitismo, mas é fascinante.

Berne

Tentava finalmente escrever qualquer coisa, quando os gritos chegaram da varanda:

- “Mancanho ka baliiiiii! Mancanho ka baliiiiiiiii!”

“A gritar desta maneira, vale menos ainda”, pensei ao acorrer a ver o sucedido. Não foi fácil perceber. A velha era de etnia Mancanho, e era localmente tida como maluca, seja lá o que isso for, doida, avariada, não muito boa da cabeça, enfim. As doenças psiquiátricas têm isso de tramado. Ao fim e ao cabo, mais não são do que pequeninas moléculas produzidas a mais ou a menos e que assim modulam o comportamento, facto que as constitui, na sua essência, doenças como as outras. Muitas vezes penso no futuro da Psiquiatria e Neurologia em conjunto, quando todo o comportamento for explicado na base molecular, e desse dia só tenho medo (não pela Psiquiatria). Posso até não saber e esse dia ter sido ontem, mas isso são contas de outro rosário, contado quando nada mais tenho a fazer. Quanto a estas doenças, a singularidade de não terem ferida ou moléstia visível confere aos seus portadores todo o tipo de rótulos e de absurdas reacções sociais, frequentemente nefastas. De qualquer forma, na plena contradição, rendo-me por vezes à sua esporádica comicidade, que chega a ter o seu quê de apreciável. Faltavam-lhe os dentes todos, brutalmente cuspidos na veemência dos certeiros insultos dali emanados, e o discurso rapidamente descarrilava para ramais de segunda repletos de passagens de nível sem guarda, entrelaçados de carinhos, mais insultos e neologismos. Encostei-me a ver, “isto promete”. Encontrando pequenos orifícios no cume dos montículos dispersos na escura pele da dita velha, a Diana apressou-se a espremê-los conforme a força o permitia, produzindo a esforço, para edificação dos restantes, a saída de pegajosas larvas de insecto, móveis e verdes:

- “Branco filho da putaaaaaaaa! Branco filho da putaaaaaaaa!”
- Toda a razão, por todos os motivos e mais alguns, mas
- “Ó Tia, isso são maneiras de falar, o que é agora isso?”
- “Eu posso dizer filho da puta, porque a seguir peço desculpa.”
- “Bem, quer dizer, não sei se...”
- “Merda, merda! Branco filho da putaaaaaaa! Braaaaaanco filho da puta!”

Lá se cuspiram as larvas todas cá para fora, entre os dedos da Diana, os insultos da velha, e o riso dos presentes e dos transeuntes, que levavam as mãos à cabeça na originalidade dos vitupérios. Finalizada a espremida tortura, com desvelado gengival sorriso, apertando as espremedoras mãos nas suas, a Tia rematou:

- “Agora peço desculpa: desculpa! Obrigada. Branco balê. Mancanho balê”, e acrescentou feliz, numa espiral ascendente de tom, abertura de olhos e movimento circular de braços, “raam raam raam raam raam raam raam raam raam raam raam...”.

Ficámos um bom bocado na varanda deliciados com esta Tia, que agora regularmente nos visita. Isto tanto quanto “regularmente” se possa aplicar ao caso...

História num frasco rotulado

A larga maioria da medicação que aqui temos, ou seja, a medicação que não provém de doações, é-nos fornecida pela IDA (de International Dispensary Association), e é fabricada na Índia e distribuída via Holanda para os ditos “países em desenvolvimento” (neste caso concreto, “país em retrocesso”). Nesta ideia, os rótulos trazem informação em quatro línguas, na seguinte ordem: Inglês, Francês, Castelhano e, curiosamente ou não, Português.

Kriegsgefangener


Há 3 dias que estamos sem comunicações com o exterior, por força da chuva ininterrupta, que agora cai na vertical, pesada, ruidosa e rápida. Os relâmpagos e trovões (“coriscos”, na minha terra, como os seus habitantes), que nunca me assustavam, aqui transformam a noite em dia, e a alta frequência do estridente e prolongado som assegura que estamos muito próximos da sua origem. Iniciam-se com um crepitar agudo e veloz, que ao longo de lentos segundos se vai agravando e espalhando, até se tornar num pesado, demorado e infernal ronco, que até a estrutura da casa faz vibrar. Como se uma picareta, numa só pancada seca, abrisse uma pequena fissura no solo, que, ao ramificar-se de vida própria na velocidade do estilhaço de vidro, fizesse enfim ruir toda uma montanha. É o suficiente para me acordar de noite, o que – em abono da verdade se diga – é bastante difícil, senão impossível. E ainda que não sinta medo, a cada vez que o céu se abre, tenho um visceral aperto no peito, independente da minha vontade, mais forte do que eu, que me reduz à pequenez do animal perante o fenómeno natural. Depois de tentar racionalizar – esforço que já nem a existência define – comecei a conferir um estranho fascínio a este assombro, qual manifesto da minha vida a temer por si própria, independentemente do que eu pense sobre o assunto. E já que não consigo apreender tudo, ao final de cada trovão, peço mais um. Mas não nos percamos.
A minha existência no contexto deriva da ideia de vivência numa ilha elevada ao expoente, agulha imóvel de susto num palheiro, apesar de geneticamente treinada para tal. Na curiosidade e incipiente caminho da integração (palavra que, depois da tortuosidade infindavelmente teatral e labiríntica do gesto que se queria natural no lugar do treino transpirado contra-natura, passei a desprezar), permiti-me assistir a um jogo de futebol entre equipas locais no campo de jogos – “estádio” –, onde tinha ainda a felicidade de poder contar com o Tcherno (filho da Fatu) como treinador e o Fernando como emérito e alvo ponta-de-lança da equipa da Bancada da Solidão. Cheguei já a primeira parte tinha começado, e tive a imediata sensação de que a bola tinha mudado de campo, estando agora nas minhas mãos, batata quente num corpo sem membros. Em vão a tentei chutar para outro lado, com os olhos da multidão de bancada postos em mim, até decidir ficar quieto: “há-de passar”. Quando os feixes de luz dos olhos negros se começavam enfim a desviar entre surdos comentários para o decurso da aparentemente secundária partida, bastou um espirro branco para voltar à estaca zero, holofotes em riste convergindo no meu posto em cena. Ao espirro sucederam-se, com a mesma consequência, mudanças de posição, cruzar e descruzar de pernas, o árbitro é um grande gatuno, palmas aos golos e pequenos contactos com os colegas mais próximos de bancada: não sobrevivi à primeira parte. The show must go on, mas sem mim. Na casa, gente conhecida e desconhecida deambula na permanente busca de consulta e de medicamento milagroso para as enfermidades agudas e arrastadas, ora ocupando de raízes a varanda, ora fazendo esperas à saída da casa-de-banho (o habitual ar de compromisso substituído pelo susto e perda de fôlego), ora entrando com as famílias e animais nos quartos em que em trajos forçosamente menores dormimos, como um ariete de cornos certeiros empurrado por centenas de pessoas contra o ventre distraído da minha noção de privacidade. As janelas têm redes em vez de vidro, quando têm, o que não permite sequer falar despreocupadamente ao telefone, nas agora raras alturas em que há rede. A equipa, enquanto fonte importante de problemas, não pode por isso mesmo servir de alívio (pelo menos frequentemente), tal como uma divergência de fundo no local de trabalho não pode ser facilmente substituída no momento seguinte por uma conversa informal de desabafo entre os mesmos factos e arguentes no jardim. Para os locais (esse conceito interessante e de significado variado em cada terra), ainda que empatias e insidiosas amizades comecem a surgir, temo nunca chegar a ser quem sou, senão o Médico branco da AMI. Com o tempo, verdadeiro e incontornável verdugo desta existência, nada mais aqui deverá ficar da minha imagem – perceptível e, mais que isso, respeitável. Comprometi-me (ainda que por natural modo de ser o fizesse por princípio) a defender as cores da minha Instituição, disso não posso nem quero prescindir. E se falar com terceiros puder significar a ruptura desse compromisso ou uma errada percepção da própria estima que tenho pelos meus colegas, ainda que precise, não o faço. A única distracção que me vai sendo concedida, e a espaços de código Morse, é esta – a de escrever –, parto distócico de um filho feio, que, ainda assim, se ama.
Em duas palavras: tremendamente só.

Em dez, Jobinístico resumo sentimental com desbloqueador climatérico: “é o carro enguiçado/é a lama, é a lama”.

Fabuloso pensar como um só Amigo em amena presença à sombra do embondeiro aqui da frente seria suficiente. Sei que faz parte da experiência procurada, só não sabia o quanto podia custar. Krieg ist krieg, und schnaps ist schnaps: a vontade prevalece.

P.S. Este capítulo remonta aos primeiros 15 dias da minha estadia em Bolama, mas, já que o senti e escrevi, resolvi acabá-lo e pô-lo agora aqui. Até porque a falta de um Amigo de longa data, desde então, só tem crescido. É esta, sem qualquer espécie de dúvida, a ausência mais sentida de todas, e acabei por escrevê-la num post scriptum...
E sim, Sr. Tenente, depois de tanto tempo à volta do “Retten zie gefangenen”, o título só podia ser para ti.

Geografia