sábado, 9 de agosto de 2008

Consulta em Ametite

São Bijagós, começa e acaba assim. São Bijagós. E se são Bijagós, são fabulosamente desorganizados e eméritos consumidores de álcool. Falam uma língua imperceptível mas de bela sonoridade, constroem casas em cima umas das outras, são desesperadamente atrasados, não trabalham e bebem. Bebem como se não houvesse amanhã (até porque muitas vezes não há). Também são boa gente. Sim, isso são. Encontrei-os depois de atravessar mato dentro uma meia-hora de mota, com a pesada mochila de literatura e instrumentos da médica tortura às costas, a levantar os pés quando as cobras passavam por baixo da mota, a cavaquear com o Mustafá sobre os enredos de alcova locais. Eram 80 doentes. Já o Mustafá dizia que, se estivesse no lugar deles, e se visse 20 doentes à frente dele, ia no mesmo momento para casa, mesmo que doente, pois tinha a certeza que não ia ser bem visto pelo médico. Grande Mustafá. Tive direito a um tradutor, com ar leproso, de chapéu e camisola do Sporting, que se sentou à minha direita, tossindo como se me quisesse mostrar os seus pulmões. A mesa tinha uma toalha verde, oferecendo a condição de mesa de jogo, onde eu puxava sintomas, o da frente assistia (e às vezes atirava o próprio agente infectante), o do lado jogava interpretações, e eu voltava a cortar com medicamentos. Neste jogo singular, em primeiro lugar, percebi que não era preciso qualquer formação especial para se ser tradutor. Este sábio poliglota fazia as minhas perguntas em Bijagó e, mais alto e mais devagar, respondia-me em Bijagó. Brilhante. Para mais, por inúmeras vezes se repetiu a célebre cena de, a uma pergunta minha do tipo “E tem febre?”, o tradutor e o doente ficarem cinco minutos a conversar em Bijagó, para depois me responder o tradutor:

- “Não”.

Acho que já tinha visto 20 doentes, entre as dezenas de pessoas a entrar e a sair da minha sala só porque sim, os enxota-moscas às crianças que se aglomeravam na minha janela, os cumprimentos no meio da consulta a todos os notáveis locais que decidiam ir conhecer-me, as explicações para o povo que se aglomerava em cima dos doentes de que “a consulta e as doenças são de cada doente, não são da comunidade...”, a criança que me veio oferecer goiabas enquanto auscultava uma velhota que não percebia o que se esperava dela, o velho que pela janela me dizia que tinha dores de barriga enquanto eu consultava outro, enfim, tinha já visto 20 doentes, quando se sentou esta mãe com a filha epiléctrica à minha frente. A esta altura, o suor corria-me a fio pela ponta do nariz, dois cães sarnentos dormiam refasteladamente aos meus pés, e eu já nem estava ralado com isso. Do que percebi do meu Kriol, a mãe foi a Bissau, onde lhe mudaram os medicamentos todos (apesar de a filha estar bem com os outros), e a senhora queria que oferecêssemos um deles que a farmácia de Bissau não tinha. Depois de desistir de tentar perceber o porquê da troca, perguntei ao tradutor qual deles a senhora não tinha, a ver o que se podia fazer: falaram, falaram, falaram

não me saía da ideia a forma como o Charlie Brown ouvia a professora (fuan, fuan, fuan, fuanfuanfuan, fuan, fuan)

uma tentativa de fino recorte, esta

e falaram, falaram e tornaram a falar. Quanto mais falavam, mais desesperava, mais acelerava na pista da alucinação. Já delirante, perguntei ao tradutor:

- “E então?”

- “Ranho no nariz, tosse, catarro, e dooooooooooores no corpo.”

- “Ranho?... Ranho?! Mas estamos a falar de ranho, ou estamos a falar de Epilepsia?”

- “Ah! Não! Não é isso... Eu é que estou constipado!”

Agarrei-o pelos ombros, sacudi-o durante 5 segundos, soltando-lhe nos olhos um longo

- Aaaaaaaaahhhhhhhhhhhh!

e fui destruir à dentada umas bolachas de água e sal para o alpendre de trás, com os pintos a bicarem-me dos pés as migalhas. São Bijagós.



1 comentário:

Anónimo disse...

Ah e tal são Bijagós. A mim parece-me que tens bastantes afinidades com esses seres: “são completamente desorganizados (desarrumado) e eméritos consumidores de álcool (leia-se: só esporadicamente, ao fim-de-semana e com extrema moderação). Falam uma língua imperceptível mas de bela sonoridade,(agora mais precisamente micaelense com entoação de crioulo – os telefonemas são bonitos, são!) (...) são desesperadamente atrasados (dispensáveis quaisquer comentários...mas o piano e a guitarra antes de sair de casa são o máximo), e mrenhem-mrenhem (o resto não é verdade). Também são boa gente (facto inegável).
E o final da história... Oh, que pueril! A comer uma bolachinha de água e sal...
É verdade ou é mentira? É mentira! Aldrabão! Lembras-te: pensamentos, palavras, actos e OMISSÕES.
Tenho dito. Mas és o máximo, meu branco mpélélé.
Beijos da tua "dáma"
Pitanga