- “Não”.
Acho que já tinha visto 20 doentes, entre as dezenas de pessoas a entrar e a sair da minha sala só porque sim, os enxota-moscas às crianças que se aglomeravam na minha janela, os cumprimentos no meio da consulta a todos os notáveis locais que decidiam ir conhecer-me, as explicações para o povo que se aglomerava em cima dos doentes de que “a consulta e as doenças são de cada doente, não são da comunidade...”, a criança que me veio oferecer goiabas enquanto auscultava uma velhota que não percebia o que se esperava dela, o velho que pela janela me dizia que tinha dores de barriga enquanto eu consultava outro, enfim, tinha já visto 20 doentes, quando se sentou esta mãe com a filha epiléctrica à minha frente. A esta altura, o suor corria-me a fio pela ponta do nariz, dois cães sarnentos dormiam refasteladamente aos meus pés, e eu já nem estava ralado com isso. Do que percebi do meu Kriol, a mãe foi a Bissau, onde lhe mudaram os medicamentos todos (apesar de a filha estar bem com os outros), e a senhora queria que oferecêssemos um deles que a farmácia de Bissau não tinha. Depois de desistir de tentar perceber o porquê da troca, perguntei ao tradutor qual deles a senhora não tinha, a ver o que se podia fazer: falaram, falaram, falaram
não me saía da ideia a forma como o Charlie Brown ouvia a professora (fuan, fuan, fuan, fuanfuanfuan, fuan, fuan)
uma tentativa de fino recorte, esta
e falaram, falaram e tornaram a falar. Quanto mais falavam, mais desesperava, mais acelerava na pista da alucinação. Já delirante, perguntei ao tradutor:
- “E então?”
- “Ranho no nariz, tosse, catarro, e dooooooooooores no corpo.”
- “Ranho?... Ranho?! Mas estamos a falar de ranho, ou estamos a falar de Epilepsia?”
- “Ah! Não! Não é isso... Eu é que estou constipado!”
Agarrei-o pelos ombros, sacudi-o durante 5 segundos, soltando-lhe nos olhos um longo
- Aaaaaaaaahhhhhhhhhhhh!
e fui destruir à dentada umas bolachas de água e sal para o alpendre de trás, com os pintos a bicarem-me dos pés as migalhas. São Bijagós.
1 comentário:
Ah e tal são Bijagós. A mim parece-me que tens bastantes afinidades com esses seres: “são completamente desorganizados (desarrumado) e eméritos consumidores de álcool (leia-se: só esporadicamente, ao fim-de-semana e com extrema moderação). Falam uma língua imperceptível mas de bela sonoridade,(agora mais precisamente micaelense com entoação de crioulo – os telefonemas são bonitos, são!) (...) são desesperadamente atrasados (dispensáveis quaisquer comentários...mas o piano e a guitarra antes de sair de casa são o máximo), e mrenhem-mrenhem (o resto não é verdade). Também são boa gente (facto inegável).
E o final da história... Oh, que pueril! A comer uma bolachinha de água e sal...
É verdade ou é mentira? É mentira! Aldrabão! Lembras-te: pensamentos, palavras, actos e OMISSÕES.
Tenho dito. Mas és o máximo, meu branco mpélélé.
Beijos da tua "dáma"
Pitanga
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