sábado, 28 de junho de 2008

Passagem ràpida

O pouco tempo e os vìrus no computador (mais a falta de acentos agudos) não me deixam escrever muito hoje. Saìmos na marè das 14h para Bolama, nos Bijagòs. Depois informo sobre a chegada e Bissau.
Fica o meu nùmero de telefone, e não pago nada por me ligarem - estão à vontade, que eu agradeco! :-)

+245 7273558 (a pedido de algumas famìlias, adianto que o + equivale ao 00!)

Última Chamada




Final call, flight TAP Portugal 203 destination Bissau, proceed immediately to gate 18”. O peso da mochila e os tropeções na guitarra velha, no computador, passaporte, cartão de embarque e nos zelosos e coloridamente apelidados funcionários não me deixaram sequer pensar. Embarquei numa viagem que pretende ser relevante no meu percurso pessoal a ponto de para sempre me mudar, e nem tive tempo para chorar. Há apenas 4 semanas, nada me fazia prever estar a esta hora, neste dia, nesta pressa para não perder o vôo que me leva a um futuro incerto. Uma vontade há muito sentida e pensada, uma oportunidade caída do nada, uma nesga forçada de disponibilidade, uma boa dose de gestão de susceptibilidades nos Açores e em Lisboa, muita farmácia, pouco cabelo, 5 vacinas e 2 comprimidos de Mefloquina, e eis-me na presente situação: no avião mais velho da TAP, a ouvir o bem-amado Rachmaninov no inesgotável nº3, e com Kumba Yalá sentado à minha frente. E se não é ele, é alguém que conseguiu comprar um barrete igual (de estilo duvidoso para mim, mas distinção de homem-grande entre os Balantas), e que me olha com a força do

“Tu és branco, mas sabes quem eu sou”

E mesmo que não seja, ajo como tal. Tudo bem. Ainda não saí desta réstia de pátria em que se tornou o A310-300 da TAP, e já senti o valor da minha existência a diminuir.
Para trás ficou a mão da minha Avó pousada na minha cara (antes desse dia, acusava-me diariamente de a ter suja devido à barba), com um silêncio pouco vulgar para as duas pessoas em questão. Ainda que nenhum de nós tenha dito alguma coisa nesse sentido, acho que nos trespassou em simultâneo a possibilidade de, nesta vida, ser a última vez que nos olhávamos olhos nos olhos. As minhas lágrimas forçosamente contidas e as dela anormalmente demoradas (“a lágrima é o condimento de toda a conversa”, dizia com acerto o meu Avô), seguidas de um repente de recomendação prática

“não perguntes pelo teu Tio na Guiné”,

e as costumeiras recomendações transcendentais, sem as quais me habituei a não viver, apesar de repetidas

“Deus te proteja e te livre de todos os perigos de corpo e de alma, e faça de ti um homem sério, honrado, honesto e trabalhador, manso e humilde do coração, limpo de corpo e de alma, são no corpo e espírito”

que à força das diferentes actividades dos netos

“agora eu acrescento: na terra, no ar e no mar”

(e no mato?)

Ficaram também vincados o abraço e bênção resignados dos meus Pais

“tem cuidado contigo, não facilites”

que, não concordando muito com a ideia, sabiam que este dia chegaria, mais cedo ou mais tarde. Por força de terem a minha irmã Ana a viver em Luanda, os meus Pais ficaram com 2/3 dos filhos em África, à primeira vista improvável para quem é e gosta tanto dos Açores, e “para quem os criou com tanto cuidado" (!).
Depois dos Açores, vieram os atropelos de Lisboa, e a minha culpa de mau amigo, que de tão desorganizado acabei – mais uma vez - por ter pouco tempo para as despedidas. E que boas foram... Recebi tantas e tão genuínas manifestações de afecto e de apoio, que não consegui agradecer na dimensão do que estava (e estou) sentido. Perdoem-me por isso - levo-vos comigo. Sabem a minha família e os meus amigos que nada mais pretendo levar desta vida do que o afecto deles. E por isso tentei pedir desculpa a todos. Ser velho é uma noção que diz respeito à quantidade de dias que ainda temos para viver e, quanto a isso, ninguém sabe, costuma dizer o Pai da Sara. Ainda assim, ao embarcar numa aventura destas, tenho a noção de elevar a probabilidade de alguma coisa poder correr longe do planeado (acho que não vai, mas pode), e por isso fazer sofrer os que (vá-se lá saber porquê) gostam de mim. Talvez seja um pensamento presunçoso, mas na circunstância de ser real, sinto-me obrigado a pedir desculpa – e até me sinto feliz por poder senti-lo. E nem de perto nem de longe é este o maior egoísmo. De muito egoísmo se reveste toda esta partida, já que a tento definir como a procura pessoal da experiência, da privação, provação, da perspectiva de vida, dessa visão do mundo que não aparece sem ser no genocídio ou na catástrofe natural, mas que quotidianamente existe como nós. E tudo isto - facilmente se vê - se refere à minha pessoa. É mais que claro que persigo o desejo de fazer algo útil, e isto permitir-me-á fazê-lo. No entanto, sem a primeira parte, que na combinação define o egoísmo altruísta, seria mais difícil embarcar, uma vez que algo útil por fazer não falta na minha própria terra ou - mais ainda - em Lisboa. E se o melhor que tenho para dar (pelo menos o virtualmente mais útil) é o meu trabalho e o meu tempo, “cá estamos, o que é preciso é saudinha, e da boa” (abraço, Cavalheiro!) (sim, é o nome dele). De uma só coisa tenho a noção, ainda que o sofrimento no concreto seja sempre uma coisa dificilmente antecipável, dificilmente palpável: se e quando acontecer qualquer imprevisto, Fui feliz, valeu a pena.
Nos últimos dias, a pergunta mais frequente

“Estás pronto para ir?”

redundou sempre num misto emocional de susto e cansaço físico que não poucas vezes resultou nalguma tristeza. Em termos objectivos, de bagagem nem sei o que me falta ou o que tenho a mais, e de preparação pessoal sei que antes de lá aterrar pouco terei. As últimas reuniões na sede da AMI em Lisboa deram-me uma imagem, objectivos e umas poucas recomendações. Pronto? Nunca. E o último abraço e olhos encharcados no aeroporto lembraram-me disso. Ao entrar no avião (onde já se entrevia essa outra dimensão), a repetição da ideia e das pessoas que nos últimos dias me abraçaram fez-me pensar várias vezes em fechar-me na casa-de-banho e chorar. Agora que tenho tempo para gozar as despedidas, estou – como o homem e os seus medos – irremediavelmente só. Não são mais do que lugares-comuns, mas estes são meus. Se servirem de alguma coisa a alguém, terá valido a pena escrever.
Vamos aterrar? Sim senhor, Sr. Kumba, acabo já. Deixe-me só preencher mais este boletim de entrada na Guiné a este senhor de Gabú, e eu deixo já de ser quem era.