domingo, 9 de novembro de 2008

Paranoid Android

Este texto não é meu, foi deixado pela Sara na partida da Guiné-Bissau ("o espaço que se segue é da exclusiva responsabilidade dos intervenientes...").


Paranoid Android


Passados três meses, cheguei. O primeiro susto foi o embate não previsto durante a aterragem – seria de esperar ter avistado algumas luzes na aproximação de uma cidade, pensava eu... ah, Bissau! O comandante do avião não arranjou banda sonora mais apropriada do que o “New York, New York” do Sinatra... E nem com um remix de gumbé ou funaná. Pois é, e ali estava eu numa cidade em que, espantem-se meninas, as velinhas não são para decoração e o dossel é um romântico mosquiteiro!
Fui recebida por um sorriso deslumbrante. Um tipo magro, diria até atlético, de cabelo curto-rapado, espetado estilo menino Manelinho e que falava fluentemente uma língua que me era completamente estranha - “diz que é Kriol”.
Fala-se mesmo por aqui que é um exímio exterminador de baratas, um “Dum Dum” humano no que diz respeito à eliminação de insectos (é o fim da picada!) e até sabe de ratoeiras, mas ainda não de ratos, já que o combate versus o grande e preto Ratatui apresenta um saldo negativo de duas fatias de pão, algumas bolachas, vários bagos de arroz e inquantificável quantidade de amendoins!
Engane-se a Avó Lili, que esse tal sujeito é sempre o primeiro a chegar a todos os locais, dotado de uma pontualidade quase (também não exageremos...) britânica, deita-se cedo, e, pasme-se, acorda antes do “ti-ri-ri-ri” e num movimento só já está a carregar bidões de 50 litros, para garantir o abastecimento de água da casa. Arranja-se para sair colocando o seu chapéu que lhe dá um look à la Sassá Mutema (mas de óculos escuros), e depois lá se segue o stress das mil e uma solicitações diárias, no meio do trabalho das consultas e entre uns tantos piropos de “branco mpelelé”.
No final do dia e quando é dia de graça, isto é, quando há luz, senta-se ao computador, actualiza todos os registos profissionais ao ínfimo detalhe (a tempo e horas!) e escreve para todos nós num português Queirosiano que há quem diga capaz de destronar o sucesso do Equador...
Bom, se conhecerem alguém assim, avisem-me...
Eu, por agora, vou reportar ao INFARMED um novo efeito secundário (já que não é necessariamente indesejável...) da mefloquina !

MUITOS OBRIGADOS!

Antes de mais, as minhas desculpas a quem me lê, de forma especial a quem escreve e a quem respondeu aos pedidos de ajuda, pela minha ausência prolongada do blog. Em Setembro não tive tempo para escrever o que quer que fosse, em Outubro a oportunidade de pôr coisas na net (que requer algum planeamento, já que só se faz em Bissau nos computadores que lêem CDs e sem se encravarem nesse gesto) fugiu-me entre os dedos, e em Bolama, de há algum tempo para cá, só temos electricidade a cada 3-4 dias, e cerca de 9 horas diurnas e 2 nocturnas (pouco úteis para quem trabalha fora de casa e chega normalmente tarde). Matéria-prima, já se vê, continuou a não faltar, ainda que tema o facto de a minha noção de “normal” se ter desviado há muito tempo para o que aqui se passa, e que à luz da experiência de Portugal continua a ser inimaginável. Mas adiante. Esta ideia, a de pôr o blog a servir de ponte entre quem me lê e quem eu vejo aqui, começou por uma tentativa discreta e por alguém que me pediu um dicionário. Tal foi a resposta – aos meus Amigos o devo – que muita gente beneficiou de outras tantas ajudas. A sustentabilidade de algumas – muitos, como eu próprio, argumentarão – será muito discutível: dar uns ténis ou umas camisolas a alguém em África não resolve coisa nenhuma. Mesmo um telhado. E porque é que ajudamos estes e não ajudamos outros? Toda a gente, de forma mais ou menos urgente, precisa. Os factos na generalidade e na relativização perdem significado, cor, e ganham a frieza de que necessita a agressivíssima noção de sustentabilidade. Mesmo assim, para cada um destes a que conseguimos chegar, fez diferença – isto, questione quem quiser, é irrefutável. Ainda que me arrepie citar um facínora como o Estaline (talvez o maior de todos até agora), “a morte de um homem é uma tragédia, a morte de um milhão é estatística.”. Na óptica da ajuda não sustentável, dar uma bolacha a um milhão de pessoas é garantir que esse milhão pede um copo de leite a seguir, mas dar uma bolacha a uma pessoa só pode-lhe dar algum tempo para não pensar em comida, quiçá uma oportunidade. Vale o que vale, e, sim, poderá ser de todo inútil. Já dar oportunidade de estudar a estas crianças, pelo contrário, é garantir um futuro melhor para o país inteiro. Não há outro caminho. E é fabuloso ver como uma tabanka regida por analfabetos, na ausência de um Estado, percebe essa necessidade e se junta para construir do nada uma escola (ainda que precária) para as suas crianças. O resto é simples: são estes porque é a estes que chego, é destes que gosto (um critério tão pessoal quanto tudo neste blog) e é nestes que posso garantir que o que foi enviado chega ao destino. Quanto ao sustentável, resta só dizer que, tirando as consultas, a que se aplicarão os mesmos raciocínios anteriores, é o que fazemos aqui com todo o tempo restante (que, convém afirmar, é a sua maior parte). Passado o devaneio, vamos aos agradecimentos!

À Andreia

Sim, lembro-me muito bem de ti, só não me lembro de esperar isto de ti! Fizeste uma data de coisas mal: achares que não me lembrava, teres ficado com a morada deste blog (se não estou em erro, foste a primeira pessoa a sabê-la, já que o tinha feito no dia desse mergulho, sem saber se algum dia escreveria alguma coisa), e teres mandado dinheiro a mais! Com o que sobrou do dinheiro para as matrículas dos filhos do Date – espero que não me julgues mal – matriculei ainda a filha do “nosso” diabético, a Beatriz, de 4 anos, e a filha mais velha da Fatumata, Djubai, de 20 anos, que poderá aspirar no fim do ano a aceder ao ensino superior. Seguem as fotos dos teus afilhados todos (excepção feita por pouco tempo para a Djubai e para a Beatriz, porque as fotos não ficaram gravadas no cd), e dos recibos que já tenho. Muito obrigado, Andreia!

Esta é a Djubai, que em nome próprio te agradece!






Estes são os filhos do Daté no dia da matrícula. O Malique não está na foto, porque estava com Malária. De qualquer forma, estão o Valdir (à direita) e o Malam (à esquerda), e a ti te digo que os teus “afilhados” são qualquer coisa de inteligência e alegria, e que o pai deles te está muito grato por teres apadrinhado os estudos dos três por um ano inteiro.




Esta é a Beatriz, e é o pai quem te agradece muito (não posso pôr o nome dele, já que contei o caso clínico dele num post aí para trás, perdoa!).

...ao Carlos Fernando Goyanes

Querido Amigo, a tua ajuda chegou em óptimo estado, cheia de utilidade e de surpresa. Mais: não te sabia leitor deste blog, o que muito me honra! Entreguei os livros a uma escola primária da cidade de Bolama, as sementes a uma horta comunitária da Tabanka do Wato, e ao dinheiro que mandaste para os filhos do Date (a Andreia escreveu no blog, por isso vi e planeei esta matrícula com a ajuda dela antes que a “encomenda” chegasse, perdoa) ainda não dei destino por indisponibilidade própria – as minhas desculpas, e garanto que até ao fim do mês isto está resolvido! Só espero que não faça grande diferença atribuir este dinheiro a outras crianças. Seguem as fotos. Um grande abraço, muito reconhecido!





A Professora Maria, responsável pela escola que recebeu os livros.




O Mustafá Sambú, Agente de Saúde do Wato e organizador da horta comunitária da mesma Tabanka, que muito elogiou as sementes, já as pôs na terra (juntamente com mais pessoas do Wato), e espera conseguir fazer semente desta produção!

...ao Daniel Fino Sá da Costa

Confrade Amigo, muito obrigado pelos óptimos ténis, que infelizmente chegaram um mês depois dos que o meu Pai mandou, por lapso na sede da AMI em Lisboa. Na lógica de repartir as encomendas pelas pessoas, e achando que o Ilustre Confrade não se importaria, resolvi arranjar mais uma companhia para correr - o Tcherno! O Tcherno nunca foi gordo, mas o Tu já perdeu alguns quilos, e de mim próprio, 15 quilos depois da partida, o que se dirá... Só mais uma coisa: tratei aqui uma senhora de nome Preta Fino da Costa, que ninguém me tira da cabeça que é tua prima! Um grandessíssimo abraço!


O Tcherno e os sapatos da moda.


...ao meu Pai,

que também enviou imensas sementes (seguiram para o Tio Alfa e para algumas hortas das Tabankas de Madina e de Caboupa Cabral, e as plantas já vêem o sol), dicionários, e os sapatos para o meu Amigo Tu, que caminha (caminha não, corre!) para a elegância! Um beijo reconhecido!


Walter Afonso e os seus ténis-maravilha.





O Bernardo, do Wato, quem inicou tudo isto, com o seu dicionário!




O Sr. Professor João Costa Mustasse com o outro dicionário!


...e a aos benfeitores da causa do Tio Alfa

Quase deu uma coisinha má ao senhor: eu nunca o vi assim! Fui às compras em Bissau na carrinha sem vidros e sem bancos do Abdulai, a esse sítio onde TUDO se compra chamado Bandim, e levámos connosco para o barco, depois de muito suor e de muito sangue nas mãos (mesmo: à primeira folha em que toquei, já tinha os dedos a sangrar):

- 240 folhas de zinco, compradas a 2250 fcfa/folha;
- 2 Kg de pregos de 12cm, comprados a 900 fcfa/Kg;
- 8 Kg de pregos de 7cm, comprados a 900 fcfa/Kg;
- 30 Kg de pregos com argola, comprados a 1000 fcfa/Kg.

Recebi de Portugal 870 euro, o que deu para 565.500 fcfa (1 euro = 650 fcfa). O total de gastos (sem transporte) foi de 579.000 fcfa.


Quando o barco aportou a Bolama e o Tio Alfa viu aquilo, deu-lhe um aperto no peito! Por momentos, achei que o matávamos, e que o telhado seria quase em vão! Na sua simplicidade, tirou o chapéu, disse que não tinha palavras para vos agradecer, e nas que encontrou, afirmou não ter havido ninguém em toda a sua vida que tanto tivesse feito por ele e pela família dele. Pois é: ao ver a alegria deste senhor de chapéu entre as duas mãos sobre o peito, eu que nem sou de grandes lamechices, fiquei de lágrima no olho – os meus Amigos são muito grandes. Segue o nome dos benfeitores, sem outro título ou designação que não a minha maior admiração e respeito:

Ana Melo
Ana Teresa Noéme
Carla Francisco
Carolina Arez Constant

Carolina Mendes dos Santos
Conceição Menezes

Daniel Leichsenring
Daniel Ribeiro Mendes
Daniel Sá da Costa
Fátima Carvalho
Fátima Noéme

Francisco Guerra Pinto
Ivo Silva
João Noéme (e associados!)

Luís Henrique Sequeira de Medeiros
Mª Leonor Sequeira de Medeiros
Margarida Fernandes (e associados!)
Marta Contreiras
Miguel Matias e Sousa
Pedro Bravo Ferreira
Rita Grade
Rita Tomás
Sara Gouveia (e associados!)
Tiago Rodrigues
Tânia e Tiago Mendonça

Eu nunca acreditei que em menos de um mês se conseguisse fazer isto. Palavra de honra que nunca acreditei. Sinto-me muito grato por terem provado que estava errado e por terem tornado coisas tão pouco palpáveis como uma ideia e um texto na internet num solidíssimo telhado de zinco para a enxuta velhice do Tio Alfa.


Estamos à espera que a chuva cesse para pormos o telhado no sítio. Nessa altura, voltarei a falar deste orgulho. Até lá, fica esse enorme abraço a todos, do mesmo tamanho do que o Tio Alfa me deu.

Fotografias soltas III

Quando houver arte, é porque a fotografia deve ser da Sara...




























































Fim do Ramadão