quarta-feira, 9 de julho de 2008

De passagem

Já na pressa - que os mosquitos chacinam-me as pernas - deixo só duas mensagens:

- a primeira - muito obrigado aos meus queridos amigos por todas as mensagens que têm enviado, seja aqui seja por telemóvel, e que eu só lamento não poder responder!!

- a segunda - não dá para pôr os posts do blog assim, mas só faz sentido se se ler do fim (junho) para o princípio (esta mensagem) - isto se ainda houver alguém a ler!

Estou em Bissau para reuniões com a UNICEF e com o IPAD, pelo que fico 3 dias.
Vou tentar voltar aqui amanhã, a ver se consigo mandar algumas mensagens mais dirigidas.
Beijinhos e abraços a todos

Luís.

Letreiratura




Ausências desordenadas

Carne em vez de peixe
Sobremesa
Sopa
Salada
Beber água da torneira
Ter uma torneira
Puxar um autoclismo, em vez de carregar um balde de água
Beber água depois de lavar os dentes
Gelo
Um iogurte
Leite que não seja em pó
Leite frio
Duche, banheira, qualquer coisa que não seja um balde e um caneco
Tomar banho sem ter que verificar se o que se sente nas pernas são insectos
Sentar-me na sanita sem ter medo de ser picado pelas formigas
Adormecer sem achar que as gotas de suor que me correm a pele são insectos
Um fresquinho, já agora
Ter a pele seca
Ler na cama sem ter que usar uma lanterna
Poder correr ao fim da tarde, sem repelente, e sem deitar os pulmões pela boca fora
A minha mota
A minha Leonor
O meu piano
O mar dos Açores

E a cobra atravessou a estrada

Hoje íamos três passando a pé na Praça do Império, quando este bicho preto e amarelo serpenteou 50 cm à nossa frente da esquerda para a direita, numa velocidade impressionante para quem é rastejante. Sem parar o passo, exclamei:

- “Olha a cobra! Olha a cobra!”

Vimos, rimos, e não parámos, já que ela foi mais rápida que nós a atravessar a estrada.

- “Em todo o caso” – disse o Fernando – “foi a primeira vez que vi brancos a reagir assim à visão de uma cobra...”.

Pois é, Fernando, tinha que haver um contraponto aos insectos...

Extravagância

Hoje, por ocasião da despedida do Fernando, conseguimos comprar uma galinha (que rapidamente partiu para o último galinheiro) e um frasco de mayonnaise, e a Fatu arranjou maneira de comprar um abacaxi. Surpresa das surpresas, descobrimos uma garrafa de vinho tinto português perdida num armário. Resumindo: paté de atum como entrada, galinha assada no forno com batata e abacaxi de sobremesa, acompanhados por vinho tinto. Ó delícia! Ó prazer supremo! Em toda a minha vida, acho que nunca tive tanta alegria, tanto prazer incontrolável – chego a dizer infantil - numa só refeição. Eu que nem deliro com galinha...

Grande Poda!



E, sim, acabaram temforariamente as confarações com o Faul McCartney...
Obrigado, Fedro Frado!

Quid juris?

Hoje à noite apareceu cá em casa um fulano mordido por uma cobra. Aqui há várias, muitas delas venenosas, nem por isso muito grandes. Já só tínhamos uma embalagem de anti-soro na Missão, que estava reservada para nós, para a eventualidade de precisarmos. Não hesitámos em dar, decisão irreflectida que nos soube muito bem. Dizem todos os manuais de Socorrismo “primeiro a segurança do Socorrista, que se morrer não salva mais ninguém”. Até têm razão, mas fica mais bonito nos manuais. O anti-soro só se vende em Bissau, e ainda bem que nós lá vamos na quarta-feira, não há-de ser grande problema. Por causa das coisas, há cá um sujeito que vende uma vacina anti-cobra, mas que se toma antes de ser mordido, e que – estou certo – se trata da própria banha da cobra...

Coisas de África II

Em toda e qualquer parte onde esteja encontro crianças a gritarem “brancooooooooo”. Mesmo quando vou de jeep, de mota ou de bicicleta, surgem vindas não se sabe de onde, a correrem atrás do veículo para gritarem “brancooooo”. Para mais, já percebi que o divertimento maior é quando respondo à medida: delírio total. Eles têm até duas expressões locais, e que usam frequentemente neste jogo:

- “Branco mpélélé!” – dizem eles, que quer dizer qualquer coisa como “branco muito branco”;

- “Preto mbau!” – respondo eu, e que, naturalmente, significa “preto muito preto”...

Fartamo-nos de rir uns com os outros. Não é lindo?

Coisas de África


Hoje saí pela primeira vez a explorar Bolama, e nos primeiros cem metros de caminhada passou por mim uma criança, provavelmente com 3 anos e pouco (ainda não dizia os R), que nos olhos me gritou:

- Biancoooooooooooooooooooooo!!!

Também não me contive:

- Piêtooooooooooooooooooooooo!!!

Será isto possível no resto do mundo?

Mefloquina

É sabido que a Mefloquina, fármaco com que se faz a profilaxia da Malária da Guiné, pode causar insónia, depressão e alucinação, inclusivamente visual. Estava ainda em Lisboa, já com a terapêutica iniciada, sentado fardado na esplanada do Curry Cabral, pensando na desgraça que seria alucinar ou ficar deprimido sozinho em África, quando vi no meu antebraço esquerdo dois mosquitos. Aterrorizado, e com medo de fazer gestos desapropriados, não resisti e perguntei à Sofia:

- Olha lá, vês alguma coisa no meu antebraço?
- Tem uns mosquitos, porquê?
- Porreiro... – respondi afastando os bichos, com um sorriso aliviado, gozado pela gargalhada dos restantes.

A noite passada

Satânico é o meu pensamento a teu respeito, e ardente é o meu desejo de apertar-te em minha mão, numa sede de vingança incontestável pelo que me fizeste ontem. A noite era quente e calma e eu estava em minha cama, quando, sorrateiramente, te aproximaste. Encostaste o teu corpo sem roupa no meu corpo nu, sem o mínimo pudor! Percebendo minha aparente indiferença, aconchegaste-te a mim e mordeste-me sem escrúpulos. Até nos mais íntimos lugares. Eu adormeci. Hoje quando acordei, procurei-te numa ânsia ardente, mas em vão. Deixaste em meu corpo e no lençol provas irrefutáveis do que entre nós ocorreu durante a noite. Esta noite recolho-me mais cedo, para na mesma cama te esperar. Quando chegares, quero te agarrar com avidez e força. Quero te apertar com todas as forças de minhas mãos. Só descansarei quando vir sair o sangue quente do teu corpo. Só assim, livrar-me-ei de ti, mosquito Filho da Puta!

Carlos Drummond de Andrade

Toda a gente tem as suas embirrações e fobias - desafio a excepção! A minha fobia maior, em primeiro e destacadíssimo lugar, são os insectos. Isso e tirar dentes, o que, sendo equiparável em termos emocionais, agora importa menos. Não sei porquê, mas é visceral, mais forte que eu: não gosto de insectos, “é desagradável, fico chateado” (grande Pinheiro de Azevedo!). Eu já tinha uma ideia, contudo longe em dimensão, mas o facto é que não há um decímetro quadrado de qualquer superfície em África que não tenha pelo menos um insecto. E o que é que faz alguém com fobia a insectos em África, pergunto eu? Que tremendo erro de casting! Não há grandes soluções para este sofrimento. Eles dominam o mundo que eu habito, e, como os chineses em migração, vêm sempre mais. Há-os em todos os tamanhos e feitios, alguns de uma beleza contemplável, outros feios de contorcer o estômago. Não haja espaço para ilusões: mesmo belos, são de desconfiar. Tirando as formigas (que são o insecto mais temido pela população local, e que aqui fazem construções que rivalizam com o Gaudi em estilo e dimensão), todos, mas todos, de forma mais ou menos errática, voam.

“E isso, como pode compreender, é uma situação extremamente desagradável” – já dizia uma doente minha de 6 anos de idade, em relação ao facto de o Manelinho andar sempre atrás dela na escola para a apalpar.

Até as formigas, segundo consta (ainda não tive o desprazer de viver esse pesadelo), na altura do acasalamento, voam durante 24 horas, mas aos milhões, a ponto de se ter que forrar com toalhas molhadas e sacos de areia portas e janelas e frinchas e ralos e canos para não nos invadirem a casa e o corpo. E eu que me esqueci de comprar um revólver...
Ainda não tinha começado o meu primeiro jantar em Bolama, e já um escaravelho desses crocantes e gordos, com o tamanho aproximado da palma da minha mão, que voa com o corpo na vertical com estrondoso ruído e trajecto idiota corrigido ao segundo, pousara nas minhas calças e tentara subir pelas minhas costas, entre a minha pele e a t-shirt. Pânico para mim, espectáculo para os locais.

“O Luís inda não tá habituado aos bicho...”.

Isto vai ser bonito, vai... Ao deitar-me, e depois da metódica revisão da boa vedação da caixa-forte armada com a rede mosquiteira, a tentar ler qualquer coisa à luz da vela que me transportasse para longe destes bichos (de momento, estou lendo a história de um oficial SS alemão na Segunda Guerra Mundial, e já que é Inverno em Estalinegrado, calculo que não haja tantos insectos assim...), quando já tinha os olhos semi-cerrados (“isto vai ser fácil”, pensei), levantei-me em sobressalto – sem sair da caixa-forte, convenhamos – com um troar ritmado e de alta frequência vindo do fundo do quarto. Com a minha já costumeira sorte, esta coisa alada vermelha, comprida, multi-segmentada, aparentemente sem olhos, rápida, hedionda, aterrou na minha rede, ao nível do meu nariz, e começou a dirigir-se para a zona sensível da minha caixa-forte, um dos cantos da cama - horror! E eu aqui desarmado, semi-nu, impotente! Banhei-o com repelente (isso, ao menos, tinha, e em spray), o que o fez pensar, mas não o demoveu. Houston, we have a problem! Com a lata do repelente, porrada no bicho, “adeus, vai-te, que esta rede é minha e não voltes”. Obviamente que o troar motorizado recomeçou, mas agora já o conseguia ver em aberrantes movimentos cefalo-caudais, horroroso, enorme (7 gordos centímetros de comprimento, talvez), com a vantagem de já se encontrar no chão, condição essencial para se poder ser esmagado. Há que investir. Saída rápida da caixa-forte, pés para dentro dos sapatos (semi-nu talvez, descalço é que não), e um movimento forte, rápido e crocante para acabar de vez com o nosso atroz sofrimento. Tenho muito respeito pela vida, mas aqui é claramente mais apaziguador o conceito de selecção natural. E com estes dois animais dentro do mesmo quarto, eu só consegui torcer pela minha própria espécie.
A cada vez que me lembro disto ainda fico com uma certa náusea. E o sofrimento maior nem é esse: no meio de toda esta bicharada que me assusta, é um dos mais pequenos, dos mais difíceis de ver, que mais me faz recear – é fêmea (só podia), responde por Anopheles, e oferece um parasitazinho chamado Plasmodium que causa Malária... E chega de bichos, que eu pretendo dormir hoje. Sozinho.

P.S. Um forte abraço, querido Padrinho, pela citação!

Destino Bijagós




Não sei se porque achei graça quando ouvi a palavra nas histórias do meu tio Eduardo, ou se pura e simplesmente porque a minha Mãe resolveu tratar-me assim e pronto, mas o facto é que fui tratado anos e anos, desde pequeno, por Bijagós, palavra que não raras vezes me fez reviver com um sorriso a felicidade da minha infância. Como é sabido, há coisas do arco da velha (que nada tem a ver com a minha Mãe, obrigado), e quis o destino (juro que a única coisa que fiz foi aceitá-lo) que hoje embarcasse numa canoa em direcção ao arquipélago dos Bijagós, mais concretamente rumo a Bolama, cidade da ilha principal, com o mesmo nome. Acredito no livre-arbítrio por oposição ao destino pré-formado e acho que a vida só faz sentido assim (vivida), mas há coisas que nos fazem pensar... Adiante. Embarquei mais uma vez atafulhado de coisas, através de vários outros barcos acostados ao cais e de alguns equilíbrios periclitantes entre embarcações (a nossa canoa tinha que ser a última), juntamente com a nossa equipa e outros a quem demos boleia. Se víssemos a coisa em instituições, era uma canoa bastante ilustre, aquela: havia AMI, naturalmente, Médicos do Mundo, Cooperação Espanhola e a Direcção Regional de Saúde Bolama-Bijagós. Nada mau, para uma canoa que metia água. Embarcámos ainda um frigorífico noutro cais (a gás, que não há rede pública de electricidade em Bolama), e lá seguimos para Bolama. A canoa ainda encalhou a meio, dada a pouca profundidade em todo o trajecto – daí a necessidade de esperarmos sempre pela maré alta nas deslocações Bolama-Bissau – mas nada que fizesse os já habituadíssimos Braima e Tu desesperarem. Por conseguinte, a mim também não, que continuei deitado à espera que a longa vara desenhada para o efeito nos desencalhasse. Sucesso. Três horas depois, começámos a avistar Bolama, aproximação que de imediato me recordou Paraty (esse paraíso na terra, único sítio fora dos Açores onde um dia me imaginei a viver): a construção de arquitectura colonial, reflectida e em continuidade com a água parada do mar, com edifícios sumptuosos (aqui degradados) entre enormes árvores e rodeados por verde. Na acostagem, um número significativo de pessoas olhava com curiosidade a canoa, e, entre elas, estava um velhote de túnica castanha e bóina branca de mão estendida para mim, que agradeci a ajuda e subi para o cais.

“Fui a primeira pessoa a quem ele apertou a mão em Bolama!”.

Tio Mané, o homem da gota espessa, conhecido por ver pelo menos um plasmódio por campo no microscópio quando o sangue é de branco, não vá um branco morrer de malária só porque ele não viu.

“Dótór Luís, bem-vindo a Boláma.”.

Depois dele e da gargalhada geral, as apresentações a todos os que estavam no cais, que, de forma inesperadamente calorosa, me trataram pelo nome.

“Viagem boa?”
“Comé di corpo?”
“Comé di família?”

Seguimos com o Tio Alfa, habitante do antigo Palácio do Governador, agora transformado em Palácio do Tio Alfa, que nos conduziu no jeep da Missão (das poucas viaturas na ilha) até à casa da mesma. Trata-se da casa dos médicos do antigo Hospital de Bolama, que ficava em frente à casa e de que agora só se vêm as espinhas – consta que isso permitia aos médicos da altura controlarem a actividade no hospital sem saírem de casa (tipicamente português) – uma casa amarela rectangular, com janelas, portas e persianas verdes, rodeada em toda a volta por uma varanda coberta com balaustrada amarela e chão com tijoleira quadriculada oblíqua preta e branca, à qual acedem escadas nas vertentes principais da casa e no jardim por detrás da casa. Debruçada na varanda, encontrei a Fatu (de Fatumata), uma espécie de governanta da casa, de lenço colorido na cabeça e sorriso doce e fácil, que me guiou ao meu quarto. Vendo umas flores sobre a caixa forrada que faz as vezes de mesinha-de-cabeceira, flores que nunca antes tinha visto, sem saber se estavam relacionadas com a minha chegada e sem saber bem como abordar o assunto, lá arranjei maneira:

- Bonitas, estas flores!
- São pa bó.
- Ah! Muito obrigado! Não era preciso... São muito bonitas. Como se chamam, estas flores?
- Bom, são cô-di-rosa, são rosas...
- Claro, como é que não vi isso (burro)...

Ao desfazer as malas, arrumando sistematicamente as minhas coisas num armário cinzento e velho com portas que não fecham, tive - talvez pela primeira vez - a noção de que ali ficariam as minhas coisas e eu por seis meses. Um arrepio nas costas, um suspiro enérgico e fundo,

“mas afinal não és tu o bijagós?”

e encostei as portas aos únicos sinais que me ligam a uma proveniência e a um passado, para me dirigir de novo à varanda, fonte de toda a actividade da minha nova casa.

Bissau


Trem em baixo, flaps, e só mato de um lado e de outro, aqui e ali entrecortado por rios lentos acastanhados. Quando ao mais distraído poderia ocorrer que nos estávamos a despenhar, surge uma pista cimentada por baixo (uff!) e aqui vai disto. Excelente. Ainda o avião rolava na pista (que acabava outra vez nas árvores), e já se sentia que o calor tentava colapsar a fuselagem, qual plástico a contorcer-se diante de uma chama. Slides disarmed and crosschecked, e a repentina recordação das chegadas aos Açores (em que a porta aberta de imediato assegura, pela humidade, a proximidade do mar), com a diferença, agora, de um calor já dificilmente respirável. 14h30 em Bissau. À saída, e depois do primeiro medo da luz ofuscante, uma parafernália de aparelhos e de funcionários enferrujados, no meio de algumas fardas militares e policiais que gesticulavam algo imperceptível em direcção a uma porta onde se podia ler “chegadas-arrivals”, naturalmente traduzível em lasciate ogni speranza. Controlo de passaporte (“Luís?” “Sou eu” “Passa”) e recolha das bagagens, onde, num gesto desapropriadamente civilizado, me afastei do biscoito alongado onde passariam as malas. Ao perceber-me único nessa condição (concluí dever ser também o único a aterrar aqui pela primeira vez), dependi da simpatia das pessoas – essa, genuína e imensurável - para recuperar a quantidade apreciável de malas e caixas que trazia, numa fatigante hora de trabalho de estufa entre a gente agora enraizada à volta do dito biscoito. Na fila para o controlo alfandegário, fui desviado (talvez por força dos autocolantes na minha bagagem e da minha t-shirt ou pelo indisfarçável ar de deslocado, não sei) para a passagem dos diplomatas, sem controlo de bagagem. Imediatamente a seguir à dita passagem, o funcionário que me desviou, já rodeado de um séquito de gente que em movimento me examinava, pergunta

“E sumo? Bó não tem sumo pá gente? Faz muito calor aqui...”

Obviamente que já vinha preparado para isto - ou não fosse a pequena corrupção um indicador de pouco desenvolvimento de um país – e vasculhei a minha carteira, sem saber bem quanto dar. Achei que 10 euros seria mais que bom até em Lisboa, que a minha passagem “diplomática” até valia isso, e moedas não tinha sentido dar.

“Vocês têm maneira de dividir isso?”
“Não se preocupe.”

De imediato a nota voou da minha mão, e o dito funcionário e o séquito desapareceram na porta atrás de mim, numa amálgama veloz, progressivamente mais ruidosa.

À saída do edifício do aeroporto, um mar de gente e de pó (a chegada semanal do avião de Lisboa – o único intercontinental regular a aterrar em Bissau – é um acontecimento que atrai centenas de espectadores), e um engarrafamento de carrinhos, animais, polícias e passageiros a fazer lembrar a 2ª circular nos melhores dias, caso nesta existissem animais entre os carros. Lá consegui, a custo e outra vez por cima das pessoas, passar toda a minha bagagem para a equipa AMI que me foi buscar, e seguimos para o hotel. As ruas de terra vermelha, a condução em buraco sim, buraco sim senhor, e “como é que foi a viagem” cabeçada no vidro “foi boa, foi boa” cabeçada no tecto “e vocês por aqui” computador para o chão “diz?” a porta de trás abre “pára, pára, pára” caixotes para a rua “oh merda”, enfim, tudo aparentemente normal, e eu a tentar não estranhar. Em boa verdade, o inacreditável da minha situação presente, contrastando com a de há apenas 4 horas, mais ainda com a de há 3 semanas, só me dava vontade de rir

“As coisas em que me meto...”

Bissau cheia de cicatrizes, de gente parada ao pó junto aos muros, destroços debaixo das magníficas árvores que galgavam os passeios (e às vezes os edifícios), carros desfeitos alternando com carros topo de gama com matrícula deste ano, e outra vez esse ar quente e húmido, que à pele se colava e que até o raciocínio tornava mais lento, cada vez mais pesado, contrariando a euforia da estranheza. Mesmo preparado para isto, não pude deixar de sentir uma discreta e pueril desilusão, já que dificilmente conseguia juntar esta visão com a imaginada em criança, resultado de tantas e tantas noites de histórias, que frequentemente me punham o olho a brilhar. Atravessavam-me a mente nomes como Alpoim Calvão, Diogo Neto, Amílcar Cabral, Spínola, e embora tentasse estabelecer uma relação com o que via – e têm – era difícil arranjar um fio condutor, arranjar maneira de os encaixar naquele cenário caótico e desconexo. Dei por mim sem conseguir sequer descrever Bissau: marcante, definitivamente. Deve haver, mas eu nunca vi nada assim.
“O centro de Bissau é longe?”
“Já chegámos: está aí, é o que tu vês”- rematou o Fernando, com uma gargalhada de gozo.