sábado, 6 de setembro de 2008

Mancarra

Nada nos prepara para as consultas no meio do mato, porquanto a criatividade é a arma essencial. A inexequibilidade da maior parte das soluções adquiridas ao longo dos últimos 11 anos nos Hospitais portugueses, temivelmente associada à minha própria ignorância, confere à consulta local um estatuto de verdadeiro trapézio sem rede.

“Não diminui em naaaada o seu valor”, opina preocupada e repetidamente a minha Avó acerca dos trapezistas com rede no circo, a tal ponto que me faz em maldosas vezes dizê-lo em cima da deixa antes que ela o consiga: “justamente o que eu costumo dizer”!

Completamente de acordo. Até acho que a ausência de rede aqui só diminui o nosso valor, mas adiante. Estava fazendo consulta em Gã-Thongo, para lá de Nova Sintra, na região de São João, parte continental integrante da Região Sanitária de Bolama, quando entram pai e filha de 3 anos no desmobilado gabinete cimentado, Salāmu `Alaykum, Alaykum Salāmu e a minha filha pôs um grão de mancarra no nariz há uma semana.

Mancarra é amendoim, e lê-se “mancara”, no raciocínio em sentido oposto implícito no facto de escreverem arroz com um só R.

“Ora aí está uma coisa que eu nunca fiz”. Ficou para o fim das consultas, até porque não se pretendia desmotivar as outras crianças presentes. Chegada a altura, olhando para dentro do pequenino orifício deste nariz esborrachado de preta de 3 anos, estava realmente uma coisa branca encravada no corneto inferior. A primeira e infeliz ideia foi agarrar a miúda como se a fôssemos esquartejar, e, veja-se o perigo da coisa, ver se aquilo sangrava com uma longa agulha intra-muscular (rica ideia, não foi?). Sangrar sangrou, mas só o lábio superior quando a agulha saída do nariz lá aterrou depois da vítima se mexer. Danos colaterais, prossiga o programa. Entre “já chega”, uns safanões e “eu morro”, conseguimos descolar aquilo, imprimindo à notícia a euforia de quem anuncia o sexo da criança recém-nascida: “é um amendoim”! A Marta sugeriu que “se partíssemos uma espátula, não era melhor”? E realmente não foi nada mal pensado. Mas tirar o amendoim, coisa boa, está quieto. A sala enchia-se dos amadores da saúde local, que contemplavam o espectáculo como quem come pipocas e sorve coca-cola por uma palhinha, comentando as peripécias em cena e incentivando carrascos e vítima. Transpirado e de quarto de espátula ensanguentada na mão enluvada, só me lembrava do saudoso Fernando Pessa num célebre apanhado seu, dirigindo à rapaziada que o impedia de fazer a reportagem em condições um rabugento

“Vá tudo lá pra trás, porra!”
(e esta, hem?)

Não sei por que milagre, mas alguém descobriu uma pinça ferrugenta nas caixas de medicação. “Enfim, um instrumento”! Sim, a ferrugem aqui era já um facto perfeitamente indiferente. A Diana, deitada de costas em cima da mesa de consulta, segurou a miúda contra si, de forma a que a mesma olhasse para o chão por cima do seu ombro. A Marta e os restantes distribuiram-se pelas partes móveis do corpo da vítima, segurando como podiam, a Daniela segurou a luz, e eu deitei-me no chão de braços estendidos para aquele nariz sobranceiro, à laia de mecânico que contempla por baixo a junta da biela do escape (“é sempre a junta da biela do escape”, diz o meu Amigo Flip). A dita pinça, de tal forma desproporcionada, só de entrar ocluía todo o ângulo de visão, e fazia oscilar como um sismógrafo em plena actividade as narinas daquele ser que corria a Diana à biqueirada ventral. Ainda assim, sentindo que, ao prender qualquer coisa, a pinça não fechava, e já com aquele nariz a ameaçar um ranhoso pingo de sangue, a medo puxei. As palmas ecoaram na pequena sala:

- “Ao ver sair o amendoim, foi o mesmo sentimento que tive quando vi o primeiro bébé a nascer...” – desabafou sorridente a Daniela.

Sem querer exagerar, confesso até que o que senti no alívio não andou muito longe disso – no bom medicinal Português, foi uma distócia...

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