sábado, 6 de setembro de 2008

Berne

Tentava finalmente escrever qualquer coisa, quando os gritos chegaram da varanda:

- “Mancanho ka baliiiiii! Mancanho ka baliiiiiiiii!”

“A gritar desta maneira, vale menos ainda”, pensei ao acorrer a ver o sucedido. Não foi fácil perceber. A velha era de etnia Mancanho, e era localmente tida como maluca, seja lá o que isso for, doida, avariada, não muito boa da cabeça, enfim. As doenças psiquiátricas têm isso de tramado. Ao fim e ao cabo, mais não são do que pequeninas moléculas produzidas a mais ou a menos e que assim modulam o comportamento, facto que as constitui, na sua essência, doenças como as outras. Muitas vezes penso no futuro da Psiquiatria e Neurologia em conjunto, quando todo o comportamento for explicado na base molecular, e desse dia só tenho medo (não pela Psiquiatria). Posso até não saber e esse dia ter sido ontem, mas isso são contas de outro rosário, contado quando nada mais tenho a fazer. Quanto a estas doenças, a singularidade de não terem ferida ou moléstia visível confere aos seus portadores todo o tipo de rótulos e de absurdas reacções sociais, frequentemente nefastas. De qualquer forma, na plena contradição, rendo-me por vezes à sua esporádica comicidade, que chega a ter o seu quê de apreciável. Faltavam-lhe os dentes todos, brutalmente cuspidos na veemência dos certeiros insultos dali emanados, e o discurso rapidamente descarrilava para ramais de segunda repletos de passagens de nível sem guarda, entrelaçados de carinhos, mais insultos e neologismos. Encostei-me a ver, “isto promete”. Encontrando pequenos orifícios no cume dos montículos dispersos na escura pele da dita velha, a Diana apressou-se a espremê-los conforme a força o permitia, produzindo a esforço, para edificação dos restantes, a saída de pegajosas larvas de insecto, móveis e verdes:

- “Branco filho da putaaaaaaaa! Branco filho da putaaaaaaaa!”
- Toda a razão, por todos os motivos e mais alguns, mas
- “Ó Tia, isso são maneiras de falar, o que é agora isso?”
- “Eu posso dizer filho da puta, porque a seguir peço desculpa.”
- “Bem, quer dizer, não sei se...”
- “Merda, merda! Branco filho da putaaaaaaa! Braaaaaanco filho da puta!”

Lá se cuspiram as larvas todas cá para fora, entre os dedos da Diana, os insultos da velha, e o riso dos presentes e dos transeuntes, que levavam as mãos à cabeça na originalidade dos vitupérios. Finalizada a espremida tortura, com desvelado gengival sorriso, apertando as espremedoras mãos nas suas, a Tia rematou:

- “Agora peço desculpa: desculpa! Obrigada. Branco balê. Mancanho balê”, e acrescentou feliz, numa espiral ascendente de tom, abertura de olhos e movimento circular de braços, “raam raam raam raam raam raam raam raam raam raam raam...”.

Ficámos um bom bocado na varanda deliciados com esta Tia, que agora regularmente nos visita. Isto tanto quanto “regularmente” se possa aplicar ao caso...

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