sábado, 6 de setembro de 2008

Kriegsgefangener


Há 3 dias que estamos sem comunicações com o exterior, por força da chuva ininterrupta, que agora cai na vertical, pesada, ruidosa e rápida. Os relâmpagos e trovões (“coriscos”, na minha terra, como os seus habitantes), que nunca me assustavam, aqui transformam a noite em dia, e a alta frequência do estridente e prolongado som assegura que estamos muito próximos da sua origem. Iniciam-se com um crepitar agudo e veloz, que ao longo de lentos segundos se vai agravando e espalhando, até se tornar num pesado, demorado e infernal ronco, que até a estrutura da casa faz vibrar. Como se uma picareta, numa só pancada seca, abrisse uma pequena fissura no solo, que, ao ramificar-se de vida própria na velocidade do estilhaço de vidro, fizesse enfim ruir toda uma montanha. É o suficiente para me acordar de noite, o que – em abono da verdade se diga – é bastante difícil, senão impossível. E ainda que não sinta medo, a cada vez que o céu se abre, tenho um visceral aperto no peito, independente da minha vontade, mais forte do que eu, que me reduz à pequenez do animal perante o fenómeno natural. Depois de tentar racionalizar – esforço que já nem a existência define – comecei a conferir um estranho fascínio a este assombro, qual manifesto da minha vida a temer por si própria, independentemente do que eu pense sobre o assunto. E já que não consigo apreender tudo, ao final de cada trovão, peço mais um. Mas não nos percamos.
A minha existência no contexto deriva da ideia de vivência numa ilha elevada ao expoente, agulha imóvel de susto num palheiro, apesar de geneticamente treinada para tal. Na curiosidade e incipiente caminho da integração (palavra que, depois da tortuosidade infindavelmente teatral e labiríntica do gesto que se queria natural no lugar do treino transpirado contra-natura, passei a desprezar), permiti-me assistir a um jogo de futebol entre equipas locais no campo de jogos – “estádio” –, onde tinha ainda a felicidade de poder contar com o Tcherno (filho da Fatu) como treinador e o Fernando como emérito e alvo ponta-de-lança da equipa da Bancada da Solidão. Cheguei já a primeira parte tinha começado, e tive a imediata sensação de que a bola tinha mudado de campo, estando agora nas minhas mãos, batata quente num corpo sem membros. Em vão a tentei chutar para outro lado, com os olhos da multidão de bancada postos em mim, até decidir ficar quieto: “há-de passar”. Quando os feixes de luz dos olhos negros se começavam enfim a desviar entre surdos comentários para o decurso da aparentemente secundária partida, bastou um espirro branco para voltar à estaca zero, holofotes em riste convergindo no meu posto em cena. Ao espirro sucederam-se, com a mesma consequência, mudanças de posição, cruzar e descruzar de pernas, o árbitro é um grande gatuno, palmas aos golos e pequenos contactos com os colegas mais próximos de bancada: não sobrevivi à primeira parte. The show must go on, mas sem mim. Na casa, gente conhecida e desconhecida deambula na permanente busca de consulta e de medicamento milagroso para as enfermidades agudas e arrastadas, ora ocupando de raízes a varanda, ora fazendo esperas à saída da casa-de-banho (o habitual ar de compromisso substituído pelo susto e perda de fôlego), ora entrando com as famílias e animais nos quartos em que em trajos forçosamente menores dormimos, como um ariete de cornos certeiros empurrado por centenas de pessoas contra o ventre distraído da minha noção de privacidade. As janelas têm redes em vez de vidro, quando têm, o que não permite sequer falar despreocupadamente ao telefone, nas agora raras alturas em que há rede. A equipa, enquanto fonte importante de problemas, não pode por isso mesmo servir de alívio (pelo menos frequentemente), tal como uma divergência de fundo no local de trabalho não pode ser facilmente substituída no momento seguinte por uma conversa informal de desabafo entre os mesmos factos e arguentes no jardim. Para os locais (esse conceito interessante e de significado variado em cada terra), ainda que empatias e insidiosas amizades comecem a surgir, temo nunca chegar a ser quem sou, senão o Médico branco da AMI. Com o tempo, verdadeiro e incontornável verdugo desta existência, nada mais aqui deverá ficar da minha imagem – perceptível e, mais que isso, respeitável. Comprometi-me (ainda que por natural modo de ser o fizesse por princípio) a defender as cores da minha Instituição, disso não posso nem quero prescindir. E se falar com terceiros puder significar a ruptura desse compromisso ou uma errada percepção da própria estima que tenho pelos meus colegas, ainda que precise, não o faço. A única distracção que me vai sendo concedida, e a espaços de código Morse, é esta – a de escrever –, parto distócico de um filho feio, que, ainda assim, se ama.
Em duas palavras: tremendamente só.

Em dez, Jobinístico resumo sentimental com desbloqueador climatérico: “é o carro enguiçado/é a lama, é a lama”.

Fabuloso pensar como um só Amigo em amena presença à sombra do embondeiro aqui da frente seria suficiente. Sei que faz parte da experiência procurada, só não sabia o quanto podia custar. Krieg ist krieg, und schnaps ist schnaps: a vontade prevalece.

P.S. Este capítulo remonta aos primeiros 15 dias da minha estadia em Bolama, mas, já que o senti e escrevi, resolvi acabá-lo e pô-lo agora aqui. Até porque a falta de um Amigo de longa data, desde então, só tem crescido. É esta, sem qualquer espécie de dúvida, a ausência mais sentida de todas, e acabei por escrevê-la num post scriptum...
E sim, Sr. Tenente, depois de tanto tempo à volta do “Retten zie gefangenen”, o título só podia ser para ti.

3 comentários:

Anónimo disse...

Querido Luís,
Fico sem palavras sempre q leio o teu blog... Fica apenas um turbilhão de emoções e sentimentos, mas desta vez tenho de deixar o meu testemunho! Vergonha pra quê?!?! :-)
É fascinante como consegues fazer-nos sentir-te tão perto, sentir a tua solidão, o teu medo, as tuas conquistas, rir contigo... E é tudo real, n é como os meus romances q acabam no fim do verão... ;-) Continua assim, és um orgulho!! Força e coragem para o “teu trabalho” na Guiné!! Montes de beijinhos cheios de saudades!
Carolina

Anónimo disse...

Meu querido amigo, apesar de já ter lido e relido o teu fantástico blog, ainda não tinha dado a minha contribuição. Depois de ler este teu post, achei que a mensagem era tão forte, que não a podia deixar passar em branco. Acho o teu resumo de 2 palavras uma verdade brutalmente absoluta. E se eu que estou fora, mas com internet e messenger todos os dias, sinto a falta da presença física de um amigo, imagino (ou antes, não imagino) a tua sensação!... Ao pé de ti pareço uma criança birrenta com os brinquedos todos à volta que diz que não tem com que brincar !...
E assim aproveito para te dizer que admiro o teu projecto e a tua coragem. Que sinto a tua falta e que te escrevo com "a lágrima no canto do olho", mas contente por me fazeres sentir assim. Se te serve de consolo, lembra-te do lado positivo de sentir falta dos amigos: é sinal de que os temos!
(always look at the bright side of life!). Findas as lamechices, aqui fica um grande abraço e muita força (podia até ser um Forte Abraço...)! vaMO LÁ!!!

Anónimo disse...

Experiences have a different meaning when we can share and feel them with someone we love...and the strenght we may find together is something...!!!