quarta-feira, 10 de dezembro de 2008

Tu que vens em Missão para a Guiné

Tem paciência.
O resultado imediato é uma excepção organizacional.
Tudo é possível, tudo se resolve.
Há tudo o que queiras comprar, conquanto tenhas tempo e dinheiro suficientes. O tempo, verás, gastá-lo-ás a procurar, a negociar e a esperar.
O mais barato é normalmente usado ou roubado, às vezes de ti.
Quando emprestares coisas tuas, verás que voltarão sempre num estado pior do que o pior que tinhas equacionado.
Equipamento que sobrevive à utilização pelos guineenses pode ser utilizado de forma vitalícia numa estação espacial.
Quando te achares perante uma situação impensável, o surreal vem já a seguir, e pelo seu próprio pé.
Se vais comprar telemóvel, compra MTN (o que tem a maior parte das pessoas) ou Orange (talvez o que tenha o melhor serviço). Se não o fizeres, a inimaginável ineficiência da Guinetel vai-te fazer querer atirar o telefone contra a parede e pontapeá-lo antes de cair no chão.
Pôr vinagre na salada é boa política.
Quando não resistires às saudades que tens de um vinho, ficarás com saudades de um bom vinho.
Desparasita-te regularmente.
Nunca leves as mãos à boca sem as lavar primeiro (válido em qualquer parte, aqui mais ainda).
Mesmo que o gelo venha normalmente de fábricas com suposto controlo, se puderes resistir, melhor para ti.
Tem calma: só é grave se não mantiveres a cabeça fria.
No fim do dia, olha para o teus pés. Mantém as unhas limpas e cortadas, lava bem os pés. Se tiveres feridas, trata-as agressivamente.
Não te coces: as feridas que farás são bem mais difíceis de tratar. É mais difícil parar do que não começar.
Se vais fazer profilaxia da Malária com Mefloquina, lembra-te que só dormirás no teu horário habitual. Dê por onde der, as horas de sono que perderes por qualquer motivo, não as vais recuperar. Uma insónia por semana é um preço suportável.
Com fármacos por perto, a Malária não é um bicho de sete cabeças: é uma doença que se trata.
Se tiveres esporadicamente pontos axilares dolorosos, não te preocupes: o teu corpo está a fazer o seu papel.
Traz uma lanterna de dínamo: pouparás dinheiro e uma dependência estúpida.
Quando não houver luz mas precisares de usar as duas mãos por qualquer motivo, encaixa a lanterna no pescoço. Não a ponhas na boca.
Se deixares a ponta do polegar dentro do copo, conseguirás enchê-lo no escuro sem derramar.
Se te for permitido, não venhas na época das chuvas: o trabalho é mais difícil, o ambiente é mais pesado, as deslocações são um problema, há mais insectos, há mais doença.
Se vens na época das chuvas, traz um impermeável leve de corpo inteiro, que te permita pôr uma mochila por baixo. Não te esqueças disto.
Traz os piores chinelos que encontrares: vais dar cabo deles e/ou perdê-los.
Se quiseres que fique bem lavada, vais ver a roupa a gastar-se.
A melhor técnica de tomar banho com caneco é deixá-lo encaixado na cabeça enquanto a água vai escorrendo – ficas com as mãos livres. Depressa compreenderás.
Toma banho de boca fechada.
Leva água potável contigo para todo o lado.
Se tiveres lixívia a 4%, põe 1 gota por litro de água. Faz as contas se for de outra concentração. Se não tiveres conta-gotas, molha a ponta do dedo na lixívia e deixa pingar sobre a água.
Não combines horas com quem não tem relógio.
Se precisas de te fazer transportar por mar, tens cerca de 4 horas diárias para fazê-lo, à volta da maré cheia. No restante horário, na maior parte dos sítios, não há mar para navegar (e a outra maré cheia é de noite).
A resposta a “é assim ou é assado?” é sim. Esquece essa formulação.
Mal” significa muitas vezes “muito bom” ou “demais”. Por exemplo, “sabi mal” quer dizer “sabe muito muito bem”. Não te precipites.
Se és homem, vais emagrecer. Se és mulher, tem cuidado para não engordares. Eu avisei.
O único critério é não haver critério nenhum.
O branco tem dinheiro.
Quando as coisas correrem mesmo mal, são aqueles em quem não confias tanto que te vão salvar a vida.
Corre riscos, mas guarda-te para os que não forem estúpidos.
Quando te adaptares, vai-te embora.
Não julgues os que cá estão: todos têm um preço, o que tem que ser perceptível – nem tu sabes o que farias.
Não julgues os que vêm: uma pessoa podia ter sido bestial a vida inteira se não tivesse passado por isto.
Na Missão, prepara-te para a paradoxal possibilidade de a tua principal fonte de problemas vir do teu país.
Se vens para fugir de alguma coisa, fica em casa. Todos os que encontrei nessa situação ou se perderam, ou acabaram por voltar a enfrentar aquilo de que fugiam, só que em pior estado do que quando fugiram. E pelo caminho atazanaram a vida a muita gente. Poupa isso a quem não te quer mal nenhum.
Se vens ajudar os pobrezinhos, fica em casa.
Se vens à espera de gratidão, fica em casa.
Se vens porque “vai ser tão giro”, fica em casa.
Se não suportas trinca de arroz, fica em casa.
Se não praticas regularmente a tua tolerância, trata disso primeiro: o Futebol Clube de Fiães não joga na Liga dos Campeões.
Tu vens e vais. Eles ficam, e gerem isto melhor do que tu.
Tem paciência.
Tem paciência.
Prepara-te para gostares disto.

Mesmo que não consigas explicar porquê.

5 comentários:

Unknown disse...

parece que já te estás a despedir, quase de lágrima no canto do olho...:)

ASP disse...

hahahahaah
Muito bom!
Eu nao conseguiria descrever melhor !

Anónimo disse...

Excelente, foi um prazer ler este texto, que circula pela net. Uma beleza - no limiar do emocionante para quem viveu na Guiné.

Dreamkeeper disse...

Excelente texto cheio de bons conselhos. Obrigado LSM.Gostaria de publicar no meu blog. Agradeço a sua autorização. www.dreamkeeper2005.blogspot.com

Elsa Gonçalves Francisco disse...

acrescento uma:
Se vais, leva este texto no bolso para usares em caso de "falta de paciência".

Obrigado pela partilha.:) Está muito bom!