quarta-feira, 10 de dezembro de 2008

A origem do drama* - parte I


Olha essa nuvem que tu já conheces
Ela é negra e carrega de novo na tua cabeça
Ameaçando o desfecho feliz
que tu tinhas já alinhavado para a tua peça

Porque será que ela teima em voltar
Sempre que as coisas parecem ir bem
Se ao menos fosse possível saber
De que paragens é que ela vem

O trágico de termos oitenta doentes para ver num dia é sabermos que provavelmente só um deles precisará inadiavelmente de nós, e que os outros setenta e nove não nos vão deixar reconhecê-lo. O facto será válido em qualquer parte, e já foi infelizmente sentido por várias vezes nos inacabáveis bancos de segunda-feira do Curry Cabral, repletos de impacientes que só se lembram da doença quando a hora de trabalhar lhes bate à porta ou quando ter um velho em casa os impede de ir de férias.

Há cansaço no ar, amargura no chão
Há tristeza nas torres de gente
Há dureza nos olhos nos rostos nos punhos
Da multidão desconfiada

Isso não ajuda nada
Não ajuda mesmo nada

Trágico para esse doente, trágico para o médico que se queira consciente. À luz da desmoralizante lei de Murphy, categórica afirmação de que a probabilidade de ocorrência de um determinado evento é inversamente proporcional à sua desejabilidade (tão verdadeira que não se verifica quando antecipadamente nos lembramos dela), chegamos à agonizante conclusão de que nunca conseguiremos reconhecer a tempo o nosso pior doente, esse Manneken-Pis da espera hospitalar.

Porque será que ela teima em falhar
Quando afinal tudo podia ir bem
Se ao menos fosse possível saber
De que paragens o erro vem

Eu já falei de Ametite e da etnia Bijagó local aí para trás, esses dois estandartes universais de objectivação da entropia. Mesmo que a função de todo o ser vivo (dos unicelulares ao homem) seja contrariá-la, estes não querem saber. De todo. O Universo que faça o que bem entender, e coitado de quem passa as dores. Na minha primeira consulta em Ametite – que de consulta também teve pouco –, depois de 80 doentes e de 240 mentiras (a média é de três mentiras por doente, e corresponde de forma aproximada ao número de ideias emitidas por cada um), segui de noite com o Mustafá para a praia onde os restantes tinham montado acampamento, quebrado pela exaustão, com a mochila de chumbo às costas, duas galinhas na mão esquerda e a mão direita presa à grelha de trás da mota. Uma ou duas cobras passaram, como de costume, mas o cansaço já nem me deixou estranhar. Nem maré havia para um desejado (e desejável) banho de mar. Vesti os calções de praia (castanhos da incredulidade de terem sido feitos na China e comprados por um açoriano em Chamonix para se gastarem na Guiné), peguei no balde e no caneco, enchi o primeiro de iágu di lava corpu, sim, que a iágu di bíbi tem que se poupar, e fui adelgaçar a camada que me revestia e, enfim, lavar a alma, para um pedaço de areal mais remoto, à escassa luz que do setentrional horizonte anunciava Bissau. Medianamente recomposto, limpo em igual proporção, voltei às tendas, onde um aglomerado de pessoas se juntava à volta de uma criança mal iluminada por uma lanterna. Chamado assim que fui visto, pousei balde e caneco, e acorri à cena (“mas o que será desta vez?”). Uma criança com pouco mais de um ano, ao colo da avó, esticava-se em arco rígido de concavidade dorsal, de olhos atrás da fronte, como se tentasse ver os próprios calcanhares através do crânio, como se o cérebro e o resto do crânio já nem lá estivessem. “Eu vi esta criança na consulta!” – lembrar-me já não foi mau – “Porque é que ela foi à consulta? Mediquei com o quê?”. A mãe mostrou-me a medicação que tinha – antibiótico e paracetamol – o que instantaneamente me fez duvidar, sobretudo de mim. “Porque é que a criança foi à consulta? O que foi que me contou na consulta? Há quanto tempo isto está a acontecer?” – o espectro do erro e da possibilidade de ter deixado esta criança escapar entre os meus dedos para a morte asfixiava-me, e só a imperiosidade de ter que resolver alguma coisa nesta praia às escuras e a 18 horas de qualquer sítio que pudesse ajudar minimamente esta miúda – e de ser o único ali a poder fazê-lo, estivesse em condições ou não – não me retirou por completo a frieza necessária para refazer uma hipótese diagnóstica: “Ok: pensamos em Malária cerebral, cobrimos alguns agentes de Meningite, rezamos e fazemos figas”. Afastada a pressão da solidão na decisão, com o coração surdamente doloroso preso à entretanto estreita garganta, dali saí em passo incerto, sem conseguir pestanejar, até me sentar num canto mais longe da praia escura, onde pude – enfim – chorar até que se enxugasse o erro ao inevitável.

Será que existe algum bom movimento
Neste momento em que nada vai bem
Se ao menos fosse possível saber
De que paragens a culpa vem

“Olha, Luís, tu sabes que os Bijagós são mentirosos”, dizia ao jantar o Mustafá, sintonizando a angústia, “e para tua informação, esta criança está mal há mais de duas semanas, este problema tem há mais de uma, e a Mãe, por vergonha de não ter feito nada pela filha neste tempo todo, não te falou nestes ‘ataques’”. Sim, lentamente a memória emergia: febre, tosse e expectoração purulenta, e a observação clínica sugeria um quadro pneumónico. Seria “assaz aborrecido” explorar o diagnóstico diferencial aqui, mas a Malária não complicada, quando é causa de tosse, é normalmente de tosse seca. Por outro lado, a Malária grave pode-se fazer acompanhar de infecções oportunistas (de que uma Pneumonia é exemplo), e, a bem dizer, bem podia nem ser Malária. A única questão é que, se expectoração purulenta e o que ouvi à auscultação implicarem medicar com anti-maláricos, então tenho que medicar todos os doentes com anti-maláricos. E se calhar tenho, já nem sei... Enfim. A criança voltou para casa (que está muito longe do que se possa imaginar que uma casa é), com a promessa de voltar umas horas depois para mais medicação – interná-la na praia seria um pouco pior, achei. Mas, sim, enviei-a como se se pudesse garantir que sobreviveria, fraca probabilidade assente na resignação a uma circunstância de impotência. O facto é que voltou, deviam ser três ou quatro da manhã. Notícia de sabor insípido mas menos mau, não tinha voltado a exibir qualquer fenómeno neurológico. Conclusão dos pais: está tudo bem, já não precisa de ir para o hospital de Bolama, como tínhamos combinado. Um belíssimo raciocínio. “Tenham paciência: é tarde demais para falarmos, a menina volta de manhã para darmos mais medicação e logo falamos – mas preparem-se para ir”.

*Jorge Palma, in “Asas e penas”

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