quarta-feira, 9 de julho de 2008

Bissau


Trem em baixo, flaps, e só mato de um lado e de outro, aqui e ali entrecortado por rios lentos acastanhados. Quando ao mais distraído poderia ocorrer que nos estávamos a despenhar, surge uma pista cimentada por baixo (uff!) e aqui vai disto. Excelente. Ainda o avião rolava na pista (que acabava outra vez nas árvores), e já se sentia que o calor tentava colapsar a fuselagem, qual plástico a contorcer-se diante de uma chama. Slides disarmed and crosschecked, e a repentina recordação das chegadas aos Açores (em que a porta aberta de imediato assegura, pela humidade, a proximidade do mar), com a diferença, agora, de um calor já dificilmente respirável. 14h30 em Bissau. À saída, e depois do primeiro medo da luz ofuscante, uma parafernália de aparelhos e de funcionários enferrujados, no meio de algumas fardas militares e policiais que gesticulavam algo imperceptível em direcção a uma porta onde se podia ler “chegadas-arrivals”, naturalmente traduzível em lasciate ogni speranza. Controlo de passaporte (“Luís?” “Sou eu” “Passa”) e recolha das bagagens, onde, num gesto desapropriadamente civilizado, me afastei do biscoito alongado onde passariam as malas. Ao perceber-me único nessa condição (concluí dever ser também o único a aterrar aqui pela primeira vez), dependi da simpatia das pessoas – essa, genuína e imensurável - para recuperar a quantidade apreciável de malas e caixas que trazia, numa fatigante hora de trabalho de estufa entre a gente agora enraizada à volta do dito biscoito. Na fila para o controlo alfandegário, fui desviado (talvez por força dos autocolantes na minha bagagem e da minha t-shirt ou pelo indisfarçável ar de deslocado, não sei) para a passagem dos diplomatas, sem controlo de bagagem. Imediatamente a seguir à dita passagem, o funcionário que me desviou, já rodeado de um séquito de gente que em movimento me examinava, pergunta

“E sumo? Bó não tem sumo pá gente? Faz muito calor aqui...”

Obviamente que já vinha preparado para isto - ou não fosse a pequena corrupção um indicador de pouco desenvolvimento de um país – e vasculhei a minha carteira, sem saber bem quanto dar. Achei que 10 euros seria mais que bom até em Lisboa, que a minha passagem “diplomática” até valia isso, e moedas não tinha sentido dar.

“Vocês têm maneira de dividir isso?”
“Não se preocupe.”

De imediato a nota voou da minha mão, e o dito funcionário e o séquito desapareceram na porta atrás de mim, numa amálgama veloz, progressivamente mais ruidosa.

À saída do edifício do aeroporto, um mar de gente e de pó (a chegada semanal do avião de Lisboa – o único intercontinental regular a aterrar em Bissau – é um acontecimento que atrai centenas de espectadores), e um engarrafamento de carrinhos, animais, polícias e passageiros a fazer lembrar a 2ª circular nos melhores dias, caso nesta existissem animais entre os carros. Lá consegui, a custo e outra vez por cima das pessoas, passar toda a minha bagagem para a equipa AMI que me foi buscar, e seguimos para o hotel. As ruas de terra vermelha, a condução em buraco sim, buraco sim senhor, e “como é que foi a viagem” cabeçada no vidro “foi boa, foi boa” cabeçada no tecto “e vocês por aqui” computador para o chão “diz?” a porta de trás abre “pára, pára, pára” caixotes para a rua “oh merda”, enfim, tudo aparentemente normal, e eu a tentar não estranhar. Em boa verdade, o inacreditável da minha situação presente, contrastando com a de há apenas 4 horas, mais ainda com a de há 3 semanas, só me dava vontade de rir

“As coisas em que me meto...”

Bissau cheia de cicatrizes, de gente parada ao pó junto aos muros, destroços debaixo das magníficas árvores que galgavam os passeios (e às vezes os edifícios), carros desfeitos alternando com carros topo de gama com matrícula deste ano, e outra vez esse ar quente e húmido, que à pele se colava e que até o raciocínio tornava mais lento, cada vez mais pesado, contrariando a euforia da estranheza. Mesmo preparado para isto, não pude deixar de sentir uma discreta e pueril desilusão, já que dificilmente conseguia juntar esta visão com a imaginada em criança, resultado de tantas e tantas noites de histórias, que frequentemente me punham o olho a brilhar. Atravessavam-me a mente nomes como Alpoim Calvão, Diogo Neto, Amílcar Cabral, Spínola, e embora tentasse estabelecer uma relação com o que via – e têm – era difícil arranjar um fio condutor, arranjar maneira de os encaixar naquele cenário caótico e desconexo. Dei por mim sem conseguir sequer descrever Bissau: marcante, definitivamente. Deve haver, mas eu nunca vi nada assim.
“O centro de Bissau é longe?”
“Já chegámos: está aí, é o que tu vês”- rematou o Fernando, com uma gargalhada de gozo.


1 comentário:

Cristina disse...

Estás mesmo de PARABÉNS! Descreves tudo com tanto pormenor que consigo imajinar tudo quanto dizes ao infimo pormenor! A descrição da ida po hotel, está fantástica...pode parecer mau mas fizes-te-me rir imenso!