quarta-feira, 9 de julho de 2008

Destino Bijagós




Não sei se porque achei graça quando ouvi a palavra nas histórias do meu tio Eduardo, ou se pura e simplesmente porque a minha Mãe resolveu tratar-me assim e pronto, mas o facto é que fui tratado anos e anos, desde pequeno, por Bijagós, palavra que não raras vezes me fez reviver com um sorriso a felicidade da minha infância. Como é sabido, há coisas do arco da velha (que nada tem a ver com a minha Mãe, obrigado), e quis o destino (juro que a única coisa que fiz foi aceitá-lo) que hoje embarcasse numa canoa em direcção ao arquipélago dos Bijagós, mais concretamente rumo a Bolama, cidade da ilha principal, com o mesmo nome. Acredito no livre-arbítrio por oposição ao destino pré-formado e acho que a vida só faz sentido assim (vivida), mas há coisas que nos fazem pensar... Adiante. Embarquei mais uma vez atafulhado de coisas, através de vários outros barcos acostados ao cais e de alguns equilíbrios periclitantes entre embarcações (a nossa canoa tinha que ser a última), juntamente com a nossa equipa e outros a quem demos boleia. Se víssemos a coisa em instituições, era uma canoa bastante ilustre, aquela: havia AMI, naturalmente, Médicos do Mundo, Cooperação Espanhola e a Direcção Regional de Saúde Bolama-Bijagós. Nada mau, para uma canoa que metia água. Embarcámos ainda um frigorífico noutro cais (a gás, que não há rede pública de electricidade em Bolama), e lá seguimos para Bolama. A canoa ainda encalhou a meio, dada a pouca profundidade em todo o trajecto – daí a necessidade de esperarmos sempre pela maré alta nas deslocações Bolama-Bissau – mas nada que fizesse os já habituadíssimos Braima e Tu desesperarem. Por conseguinte, a mim também não, que continuei deitado à espera que a longa vara desenhada para o efeito nos desencalhasse. Sucesso. Três horas depois, começámos a avistar Bolama, aproximação que de imediato me recordou Paraty (esse paraíso na terra, único sítio fora dos Açores onde um dia me imaginei a viver): a construção de arquitectura colonial, reflectida e em continuidade com a água parada do mar, com edifícios sumptuosos (aqui degradados) entre enormes árvores e rodeados por verde. Na acostagem, um número significativo de pessoas olhava com curiosidade a canoa, e, entre elas, estava um velhote de túnica castanha e bóina branca de mão estendida para mim, que agradeci a ajuda e subi para o cais.

“Fui a primeira pessoa a quem ele apertou a mão em Bolama!”.

Tio Mané, o homem da gota espessa, conhecido por ver pelo menos um plasmódio por campo no microscópio quando o sangue é de branco, não vá um branco morrer de malária só porque ele não viu.

“Dótór Luís, bem-vindo a Boláma.”.

Depois dele e da gargalhada geral, as apresentações a todos os que estavam no cais, que, de forma inesperadamente calorosa, me trataram pelo nome.

“Viagem boa?”
“Comé di corpo?”
“Comé di família?”

Seguimos com o Tio Alfa, habitante do antigo Palácio do Governador, agora transformado em Palácio do Tio Alfa, que nos conduziu no jeep da Missão (das poucas viaturas na ilha) até à casa da mesma. Trata-se da casa dos médicos do antigo Hospital de Bolama, que ficava em frente à casa e de que agora só se vêm as espinhas – consta que isso permitia aos médicos da altura controlarem a actividade no hospital sem saírem de casa (tipicamente português) – uma casa amarela rectangular, com janelas, portas e persianas verdes, rodeada em toda a volta por uma varanda coberta com balaustrada amarela e chão com tijoleira quadriculada oblíqua preta e branca, à qual acedem escadas nas vertentes principais da casa e no jardim por detrás da casa. Debruçada na varanda, encontrei a Fatu (de Fatumata), uma espécie de governanta da casa, de lenço colorido na cabeça e sorriso doce e fácil, que me guiou ao meu quarto. Vendo umas flores sobre a caixa forrada que faz as vezes de mesinha-de-cabeceira, flores que nunca antes tinha visto, sem saber se estavam relacionadas com a minha chegada e sem saber bem como abordar o assunto, lá arranjei maneira:

- Bonitas, estas flores!
- São pa bó.
- Ah! Muito obrigado! Não era preciso... São muito bonitas. Como se chamam, estas flores?
- Bom, são cô-di-rosa, são rosas...
- Claro, como é que não vi isso (burro)...

Ao desfazer as malas, arrumando sistematicamente as minhas coisas num armário cinzento e velho com portas que não fecham, tive - talvez pela primeira vez - a noção de que ali ficariam as minhas coisas e eu por seis meses. Um arrepio nas costas, um suspiro enérgico e fundo,

“mas afinal não és tu o bijagós?”

e encostei as portas aos únicos sinais que me ligam a uma proveniência e a um passado, para me dirigir de novo à varanda, fonte de toda a actividade da minha nova casa.

1 comentário:

Anónimo disse...

Essa cena de bijagos devia ser modinha, pk tb tive a mesma "honra". Saudades tuas ma frend. Ja editavas um livro "Medical Lifestyle in Bijagos" Abraco