quarta-feira, 9 de julho de 2008

A noite passada

Satânico é o meu pensamento a teu respeito, e ardente é o meu desejo de apertar-te em minha mão, numa sede de vingança incontestável pelo que me fizeste ontem. A noite era quente e calma e eu estava em minha cama, quando, sorrateiramente, te aproximaste. Encostaste o teu corpo sem roupa no meu corpo nu, sem o mínimo pudor! Percebendo minha aparente indiferença, aconchegaste-te a mim e mordeste-me sem escrúpulos. Até nos mais íntimos lugares. Eu adormeci. Hoje quando acordei, procurei-te numa ânsia ardente, mas em vão. Deixaste em meu corpo e no lençol provas irrefutáveis do que entre nós ocorreu durante a noite. Esta noite recolho-me mais cedo, para na mesma cama te esperar. Quando chegares, quero te agarrar com avidez e força. Quero te apertar com todas as forças de minhas mãos. Só descansarei quando vir sair o sangue quente do teu corpo. Só assim, livrar-me-ei de ti, mosquito Filho da Puta!

Carlos Drummond de Andrade

Toda a gente tem as suas embirrações e fobias - desafio a excepção! A minha fobia maior, em primeiro e destacadíssimo lugar, são os insectos. Isso e tirar dentes, o que, sendo equiparável em termos emocionais, agora importa menos. Não sei porquê, mas é visceral, mais forte que eu: não gosto de insectos, “é desagradável, fico chateado” (grande Pinheiro de Azevedo!). Eu já tinha uma ideia, contudo longe em dimensão, mas o facto é que não há um decímetro quadrado de qualquer superfície em África que não tenha pelo menos um insecto. E o que é que faz alguém com fobia a insectos em África, pergunto eu? Que tremendo erro de casting! Não há grandes soluções para este sofrimento. Eles dominam o mundo que eu habito, e, como os chineses em migração, vêm sempre mais. Há-os em todos os tamanhos e feitios, alguns de uma beleza contemplável, outros feios de contorcer o estômago. Não haja espaço para ilusões: mesmo belos, são de desconfiar. Tirando as formigas (que são o insecto mais temido pela população local, e que aqui fazem construções que rivalizam com o Gaudi em estilo e dimensão), todos, mas todos, de forma mais ou menos errática, voam.

“E isso, como pode compreender, é uma situação extremamente desagradável” – já dizia uma doente minha de 6 anos de idade, em relação ao facto de o Manelinho andar sempre atrás dela na escola para a apalpar.

Até as formigas, segundo consta (ainda não tive o desprazer de viver esse pesadelo), na altura do acasalamento, voam durante 24 horas, mas aos milhões, a ponto de se ter que forrar com toalhas molhadas e sacos de areia portas e janelas e frinchas e ralos e canos para não nos invadirem a casa e o corpo. E eu que me esqueci de comprar um revólver...
Ainda não tinha começado o meu primeiro jantar em Bolama, e já um escaravelho desses crocantes e gordos, com o tamanho aproximado da palma da minha mão, que voa com o corpo na vertical com estrondoso ruído e trajecto idiota corrigido ao segundo, pousara nas minhas calças e tentara subir pelas minhas costas, entre a minha pele e a t-shirt. Pânico para mim, espectáculo para os locais.

“O Luís inda não tá habituado aos bicho...”.

Isto vai ser bonito, vai... Ao deitar-me, e depois da metódica revisão da boa vedação da caixa-forte armada com a rede mosquiteira, a tentar ler qualquer coisa à luz da vela que me transportasse para longe destes bichos (de momento, estou lendo a história de um oficial SS alemão na Segunda Guerra Mundial, e já que é Inverno em Estalinegrado, calculo que não haja tantos insectos assim...), quando já tinha os olhos semi-cerrados (“isto vai ser fácil”, pensei), levantei-me em sobressalto – sem sair da caixa-forte, convenhamos – com um troar ritmado e de alta frequência vindo do fundo do quarto. Com a minha já costumeira sorte, esta coisa alada vermelha, comprida, multi-segmentada, aparentemente sem olhos, rápida, hedionda, aterrou na minha rede, ao nível do meu nariz, e começou a dirigir-se para a zona sensível da minha caixa-forte, um dos cantos da cama - horror! E eu aqui desarmado, semi-nu, impotente! Banhei-o com repelente (isso, ao menos, tinha, e em spray), o que o fez pensar, mas não o demoveu. Houston, we have a problem! Com a lata do repelente, porrada no bicho, “adeus, vai-te, que esta rede é minha e não voltes”. Obviamente que o troar motorizado recomeçou, mas agora já o conseguia ver em aberrantes movimentos cefalo-caudais, horroroso, enorme (7 gordos centímetros de comprimento, talvez), com a vantagem de já se encontrar no chão, condição essencial para se poder ser esmagado. Há que investir. Saída rápida da caixa-forte, pés para dentro dos sapatos (semi-nu talvez, descalço é que não), e um movimento forte, rápido e crocante para acabar de vez com o nosso atroz sofrimento. Tenho muito respeito pela vida, mas aqui é claramente mais apaziguador o conceito de selecção natural. E com estes dois animais dentro do mesmo quarto, eu só consegui torcer pela minha própria espécie.
A cada vez que me lembro disto ainda fico com uma certa náusea. E o sofrimento maior nem é esse: no meio de toda esta bicharada que me assusta, é um dos mais pequenos, dos mais difíceis de ver, que mais me faz recear – é fêmea (só podia), responde por Anopheles, e oferece um parasitazinho chamado Plasmodium que causa Malária... E chega de bichos, que eu pretendo dormir hoje. Sozinho.

P.S. Um forte abraço, querido Padrinho, pela citação!

2 comentários:

Unknown disse...

"Ainda não tinha começado o meu primeiro jantar em Bolama, e já um escaravelho desses crocantes e gordos, com o tamanho aproximado da palma da minha mão, que voa com o corpo na vertical com estrondoso ruído e trajecto idiota corrigido ao segundo, pousara nas minhas calças e tentara subir pelas minhas costas, entre a minha pele e a t-shirt. Pânico para mim, espectáculo para os locais."

Ainda pensei em visitar-te... Agora... As baratas na Arrecadação das Capelas já nem me parecem tão más ! Damn, Arrepio-me só de pensar !

Mando duas latinhas de Dum Dum pelo (não existente) correio ?

Good Luck, Mr. Gorsky !

L*

FLiP

Unknown disse...

Damn, Damn, Damn...

Nunca mais venho ler isto... ando a dar sacudidelas no rato porque me parece que tenho bichos nas mãos !