sexta-feira, 12 de dezembro de 2008

Nomenclatura

Ontem tentei ir com a Sofia, o Andrés e o Paco (dois nuestros hermanos da Cooperação Espanhola) à discoteca que o nosso marinheiro Braima gere aqui em Bolama. Discoteca, no caso, é uma expressão europeia aplicada a um conceito africano necessariamente diferente, mas avancemos. À porta da dita, onde não chegámos a entrar porque as entradas não compensavam o combustível do gerador, aproximou-se de nós um jovem bolamense, que do alto da sua embriaguez me abordou:

- Luís! I comá?
- Tudo bem, tudo bem, e tu?
- Lembras-te de mim? Eu sou Almirante!
- Ai sim? Almirante de quê?
- Almirante. É o meu nome.

Do segundo país mais pobre do mundo para o país mais desenvolvido do mundo

Queridos Carolina e Pedro

Em resposta vos informo que acordei hoje às 5h30 da manhã. Sentei-me à porta de casa a prevenir Malária (que é como quem diz - matar mosquitos) enquanto esperava pelo marinheiro da missão, que tinha combinado ir comigo de mota até Tite. Como não aparecia, fui de mota às escuras pelas valas das ruas de terra esburacada de Bolama à sua casa de barro com telhado de palha. Lá o acordei, e fomos até ao porto, outra vez às escuras (sim, não há electricidade em Bolama, e a mota tinha uma lâmpada fraca, que está fundida, pelo que a lanterna presa no pescoço com a minha cabeça de lado fez as vezes). Chegando ao porto, descemos as escadas cheias de algas (maré vazia) com a pesadíssima mota a reboque derrapante, para entrarmos na canoa feita num tronco de embondeiro escavado (e que mete muita água e balança como o pêndulo de um relógio), a fim de atravessarmos o canal de mar para o continente. Chegando ao outro lado, enterrei-me no lodo até aos joelhos para tirar a mota da piroga para depois seguir mato dentro. O sol já nascia, já se via alguma coisa, tudo bem. Vi macacos, esquilos, cobras e perdizes, íamos matando dois cabritos, uma criança ranhosa e três galinhas, e foi tanto tanto mato que acabei com braços e pernas cortados e cheios de coisas peganhentas. Seguimos por essa estrada de terra (outra vez esburacada) até Tite, com muita lama pelo caminho, e em Tite (ou melhor, é depois de Tite, e chama-se Enchudé), esperei outra canoa para me levar a Bissau. No cais, dois macacos mortos esfolados e queimados, a fazer lembrar (a semelhança é assustadora) dois cadáveres de pigmeus, muito peixe ao sol, muita mosca, muita gente (que chegava nas caixas de uns camiões podres e fumarentos), e duas canoas podres com água dentro. A maré estava enchendo com alguma força, pelo que a vaga contra o Geba (o rio) estava forte. O motor da minha superpovoada canoa avariou à partida, pelo que seguimos até Bissau no ralenti. Três horinhas nas águas lodosas e revoltas do Geba, sem ninguém que soubesse nadar a bordo senão eu, sem nenhum colete salva-vidas a bordo, sem outro motor. Levar as mãos à boca sem lavar, especialmente durante uma epidemia de cólera com quase 15000 infectados sintomáticos, tem alguma coisa que se lhe diga, pelo que comer e partilhar as poucas bolachas que tinha trazido para "os imprevistos" (que são previsivelmente regulares, mas não no conteúdo) foi tarefa microbiologicamente difícil. Saído do cais improvisado de canoas em Bissau, segui em fila africana pelas pedras plantadas no meio do grande charco em que se transformou a rua que conduz ao cais, escorregando nos meus chinelos de 500 francos cfa (mais ou menos 80 cêntimos de euro) e aterrando na lama duas vezes, para gáudio dos presentes ("djubi brancu!"-"vê o branco!"). Chegado finalmente ao hotel, confirmei que "ah e tal, a gente disse que havia vaga porque uns fulanos iam sair, mas não sairam - a tua reserva fica para outra altura" (para outra altura?). Lá me instalaram noutro hotel - está difícil encontrar quarto em Bissau, já que a Cólera e as eleições (ou a letal palhaçada a que chamam isso aqui) trouxeram muitos engravatados de calças com bolsos e chapéu de Mick Dundee. Fiquei num quarto que tem um duche (só água fria, e - mais uma vez - com Vibrio cholerae) ao lado da cama, mas a sanita é comum a mais 5 quartos. Tudo bem, eu preciso mesmo é de ficar apresentável para a reunião de urgência de amanhã com o Ministro da Saúde, até porque sei bem o que quero dele, não sei é o que ele quer de mim e porque me chamou. Não há-de ser nada, porque nunca o é na Guiné. Finalmente consegui tomar um banho (de boca fechada, convenhamos), e saí do hotel debaixo de uma chuva copiosa e quente para comer uma saborosa pizza (não há restaurantes em Bolama, e um queijo flamengo de borracha ranhosa na Guiné é difícil encontrar e custa 10.000 francos, o que é um ordenado habitual na Guiné, para os que o têm - cerca de 15 euros) num restaurante senegalês - com os pés outra vez cheios de lama -, e vim sentar-me neste cybercafé onde de cada hora de internet se gastam 20minutos para abrir uma página, a ver se conseguia corresponder-me com a AMI-Portugal e, enfim, ter notícias dos meus amigos, o melhor de todas as vindas a Bissau. Enfim, penso que hoje será um dia melhor do que o normal, já que, EM PRINCÍPIO, não me irão acordar à cama do hotel para uma consulta ou para evacuar uma parturiente encravada numa Tabanka qualquer, em Bissau consigo circular pela rua QUASE sem ter gente a pedir-me coisas ou a gritar "BRANCO!", e talvez consiga deitar-me cedo e engordar um quilo ou dois dos 15 entretanto perdidos. Ora bem, tudo isto para dizer que não estou tão longe do Canadá, também estamos no hemisfério norte, e a comprová-lo está o frio que se faz sentir (segundo os locais), já que a temperatura a esta hora ronda os 28 graus. Para além disso, acho que a Guiné tem mais uma vantagem em relação ao Canadá: parece não haver ursos por cá, e a haver, é só um e dorme na minha cama.
Espero que esta carta vos encontre bem e que rapidamente nos possamos reencontrar.
Abraços, beijinhos e saudades muitas, sempre vosso

L.

Uma questão de sorte

Feminilidade

Entre os muçulmanos guineenses, as várias mulheres de um determinado homem tratam-se por cumbossa, são cumbossas umas das outras. Da envolvência emocional que tal estatuto feminino implica, o Kriol tratou de criar uma pequena família etimológica de sentido observacional raro, a saber: intriguista diz-se cumbosseru, e rivalidade cumbossaria. Delicioso.

Konsulta


- Bom dia, comá di corpu?
- Corpu sta bom, i comá?
- Manga di tarbadju, ma sta dirito. Abó bom bom ca sta tchiu, pabia que bo sta li...
- I bardadi! I ca sta diritu tchiu...
- Nundé que na deu?
- Corpu tuuuudu na den, i na den mal! Corpu di noti sta quiiiinti!
- Qual dia que cumsa?
- I tarda.
- Quantu dia que tarda?
- I tarda.
- I tarda um dia, um semana, um mis, dus mis, um anu...
- I ca fassi um semana inda, i cumsa outro dia.
- Outro dia... Abó tene ranho?
- Hmm.
- I ta tursi?
- Hmm.
- Tene cataro?
- Hmm.
- Qual cor di cataro?
- Hmm.
- N’puntau qual cor di cataro i abó falan ”Hmm”?!
- Hmm.
- Bo ôbi: abó tene cataro - qual cor di és cataro?
- I barmelhu.
- Barmelhu suma istu? Djubi li.
- Tsc tsc. I suma istu.
- Issu i ca barmelhu, i amarelo...
- I bardadi, i amarelo. N’ca sibi.
- Bom, bariga ca na deu, bo ca ta ramassa, bo ca ta panga, ora que bo missa ca na deu?
- Hmm.
- I tene algum pecadur em bu morança com doença suma és?
- Tsc tsc.
- Ok, abri boca.
Tira língua. Fala “Aaaah”.
Fala “Aaaah”.
Abo! N’pidiu pa bo fala “Ah”! Suma ami. “Aaaaaah”.
- Ah.
- Não. Fala “Aaaaaaaah”.
- Ah.
- Não, não... Fala “Aaaaaaaaah”.
- Aaaaaaaaaaah.
- Issu, n’djusta. Gossi, da fôlgu fundo pela boca, pa dentru i pa fora.
Não, não... Djubi.
Issu. Abó na fassi issu manga di biás.
- Bom, n’pensa que bo tene constipaçom.
- Iô.
- Ali receita. Mustafá na dau messinho. Si abó ca sta um bocado mindjor dipus di ermon di amanhã, bó na torna li e papia cu Agente de Saúde, bo ôbi?
- Hmm.
- Pega messinho na mon di Mustafá.
- Hmm.
- Bo ôbi?
- Hmm.
- Bo na bai!
- Ami?
- Iô, n’tene manga di djintis que misti consulta li. Bo consulta caba.
- Iô. Ami na bai.
- Adeus, bom dia. Mussa! Mais um doente!
- N’disquicil: cussa lá... abó pui li messinho di pintcho? N’tene pintcho li. Partin pomada.
- N’cansa di falau pa bo conta tudu ora qui bo na bim a consulta. Si abó ca fala um cussa, n’ca pudi adivinhal: ami i médicu, n’ca macumberu... Tissin receita utru biás...
Prontu. Pega messinho em si mon.
- Na mon di quim?
- Abó! Di Mustafá. El na splicau. Ami tene já utru doente li.
- Iô. Ami na bai.
- Iô (Deus obrigadu!)... Bom dia bom dia, i comá di corpu?

P.S. As minhas desculpas ao criolo por maltratá-lo de forma tão leviana e tosca...

Açorianos na Guiné

O Tio Alfa – já o disse – foi combatente pelo exército português na Guerra Colonial (tema que, sem o ter vivido, me é afectiva e naturalmente caro), o que o constitui como óptimo repositório de histórias da nossa armada na Guiné, com a vantagem de mostrar uma perspectiva africana. Pouco tempo depois da minha chegada à Guiné, aquando de uma das minhas incursões no mato com o Mustafá, o Tio Alfa comentou:

- Os Açorianos? Os Açorianos na Guerra eram como os Balantas: não tinham medo do mato - eram guerreiros, e guerreiros bravos... E depois falavam de uma forma diferente, o que ainda metia mais medo. Parecia Português, mas era uma língua diferente, não se percebia nada...

P.S. Sabe a maior parte dos que me lêem que não existe tal coisa como uma pronúncia Açoriana, já que cada ilha tem a sua própria pronúncia. Para quem seja novidade, devo mais uma vez registar que o que os continentais chamam vulgarmente de “Açoriano” corresponde à pronúncia micaelense, da Ilha do Arcanjo São Miguel, onde reside a maior parte da população Açoriana, factor que confundirá o menos atento. Esta foi só pela justiça elementar que aos meus conterrâneos das outras ilhas se deve. E, sim, são várias formas de falar a mesma língua, o bem-amado Português...

Sassá Mutema

Sim, o meu chapéu faz sensação. Não muito longe do aspecto com que ficou mais célebre – na lustrosa calva do não menos brilhante Lima Duarte –, confere-me um ar de turista em passeio admirativo por África ou de triste português que caminha com a isotérmica para a praia aos sábados. Apesar de consciente disso, uma fútil impressão me arrasta para a sua quotidiana utilização, e me deixa algum gozo a cada vez que o levanto para cumprimentar quem passa: se não for possível fazer um trabalho sério e competente e ser respeitado debaixo de cobertura tão humoristicamente ridícula, talvez – mas só talvez – a vida seja um pouco pesada demais, talvez tenha um bocadinho menos de encanto.

Economia

Vi em Bissau que o Presidente Bush e os seus economistas (esses profissionais cuja função é dizer amanhã porque o que disseram ontem não se verificou hoje) gizaram um plano de salvamento da economia americana orçado em setecentos mil milhões de dólares. Setecentos mil milhões de dólares. Intrigado com esta impalpável quantia de dinheiro, decidi usar o meu telemóvel para convertê-la em francos cfa, a ver quanto isso significaria em sacos de 50Kg de trinca de arroz, medida demagógica mas, enfim, mais concretizável. O telemóvel foi claro:

- Out of range.

Foi o que eu pensei.

Bendita cocaína

quarta-feira, 10 de dezembro de 2008

Tu que vens em Missão para a Guiné

Tem paciência.
O resultado imediato é uma excepção organizacional.
Tudo é possível, tudo se resolve.
Há tudo o que queiras comprar, conquanto tenhas tempo e dinheiro suficientes. O tempo, verás, gastá-lo-ás a procurar, a negociar e a esperar.
O mais barato é normalmente usado ou roubado, às vezes de ti.
Quando emprestares coisas tuas, verás que voltarão sempre num estado pior do que o pior que tinhas equacionado.
Equipamento que sobrevive à utilização pelos guineenses pode ser utilizado de forma vitalícia numa estação espacial.
Quando te achares perante uma situação impensável, o surreal vem já a seguir, e pelo seu próprio pé.
Se vais comprar telemóvel, compra MTN (o que tem a maior parte das pessoas) ou Orange (talvez o que tenha o melhor serviço). Se não o fizeres, a inimaginável ineficiência da Guinetel vai-te fazer querer atirar o telefone contra a parede e pontapeá-lo antes de cair no chão.
Pôr vinagre na salada é boa política.
Quando não resistires às saudades que tens de um vinho, ficarás com saudades de um bom vinho.
Desparasita-te regularmente.
Nunca leves as mãos à boca sem as lavar primeiro (válido em qualquer parte, aqui mais ainda).
Mesmo que o gelo venha normalmente de fábricas com suposto controlo, se puderes resistir, melhor para ti.
Tem calma: só é grave se não mantiveres a cabeça fria.
No fim do dia, olha para o teus pés. Mantém as unhas limpas e cortadas, lava bem os pés. Se tiveres feridas, trata-as agressivamente.
Não te coces: as feridas que farás são bem mais difíceis de tratar. É mais difícil parar do que não começar.
Se vais fazer profilaxia da Malária com Mefloquina, lembra-te que só dormirás no teu horário habitual. Dê por onde der, as horas de sono que perderes por qualquer motivo, não as vais recuperar. Uma insónia por semana é um preço suportável.
Com fármacos por perto, a Malária não é um bicho de sete cabeças: é uma doença que se trata.
Se tiveres esporadicamente pontos axilares dolorosos, não te preocupes: o teu corpo está a fazer o seu papel.
Traz uma lanterna de dínamo: pouparás dinheiro e uma dependência estúpida.
Quando não houver luz mas precisares de usar as duas mãos por qualquer motivo, encaixa a lanterna no pescoço. Não a ponhas na boca.
Se deixares a ponta do polegar dentro do copo, conseguirás enchê-lo no escuro sem derramar.
Se te for permitido, não venhas na época das chuvas: o trabalho é mais difícil, o ambiente é mais pesado, as deslocações são um problema, há mais insectos, há mais doença.
Se vens na época das chuvas, traz um impermeável leve de corpo inteiro, que te permita pôr uma mochila por baixo. Não te esqueças disto.
Traz os piores chinelos que encontrares: vais dar cabo deles e/ou perdê-los.
Se quiseres que fique bem lavada, vais ver a roupa a gastar-se.
A melhor técnica de tomar banho com caneco é deixá-lo encaixado na cabeça enquanto a água vai escorrendo – ficas com as mãos livres. Depressa compreenderás.
Toma banho de boca fechada.
Leva água potável contigo para todo o lado.
Se tiveres lixívia a 4%, põe 1 gota por litro de água. Faz as contas se for de outra concentração. Se não tiveres conta-gotas, molha a ponta do dedo na lixívia e deixa pingar sobre a água.
Não combines horas com quem não tem relógio.
Se precisas de te fazer transportar por mar, tens cerca de 4 horas diárias para fazê-lo, à volta da maré cheia. No restante horário, na maior parte dos sítios, não há mar para navegar (e a outra maré cheia é de noite).
A resposta a “é assim ou é assado?” é sim. Esquece essa formulação.
Mal” significa muitas vezes “muito bom” ou “demais”. Por exemplo, “sabi mal” quer dizer “sabe muito muito bem”. Não te precipites.
Se és homem, vais emagrecer. Se és mulher, tem cuidado para não engordares. Eu avisei.
O único critério é não haver critério nenhum.
O branco tem dinheiro.
Quando as coisas correrem mesmo mal, são aqueles em quem não confias tanto que te vão salvar a vida.
Corre riscos, mas guarda-te para os que não forem estúpidos.
Quando te adaptares, vai-te embora.
Não julgues os que cá estão: todos têm um preço, o que tem que ser perceptível – nem tu sabes o que farias.
Não julgues os que vêm: uma pessoa podia ter sido bestial a vida inteira se não tivesse passado por isto.
Na Missão, prepara-te para a paradoxal possibilidade de a tua principal fonte de problemas vir do teu país.
Se vens para fugir de alguma coisa, fica em casa. Todos os que encontrei nessa situação ou se perderam, ou acabaram por voltar a enfrentar aquilo de que fugiam, só que em pior estado do que quando fugiram. E pelo caminho atazanaram a vida a muita gente. Poupa isso a quem não te quer mal nenhum.
Se vens ajudar os pobrezinhos, fica em casa.
Se vens à espera de gratidão, fica em casa.
Se vens porque “vai ser tão giro”, fica em casa.
Se não suportas trinca de arroz, fica em casa.
Se não praticas regularmente a tua tolerância, trata disso primeiro: o Futebol Clube de Fiães não joga na Liga dos Campeões.
Tu vens e vais. Eles ficam, e gerem isto melhor do que tu.
Tem paciência.
Tem paciência.
Prepara-te para gostares disto.

Mesmo que não consigas explicar porquê.

A origem do drama* - parte I


Olha essa nuvem que tu já conheces
Ela é negra e carrega de novo na tua cabeça
Ameaçando o desfecho feliz
que tu tinhas já alinhavado para a tua peça

Porque será que ela teima em voltar
Sempre que as coisas parecem ir bem
Se ao menos fosse possível saber
De que paragens é que ela vem

O trágico de termos oitenta doentes para ver num dia é sabermos que provavelmente só um deles precisará inadiavelmente de nós, e que os outros setenta e nove não nos vão deixar reconhecê-lo. O facto será válido em qualquer parte, e já foi infelizmente sentido por várias vezes nos inacabáveis bancos de segunda-feira do Curry Cabral, repletos de impacientes que só se lembram da doença quando a hora de trabalhar lhes bate à porta ou quando ter um velho em casa os impede de ir de férias.

Há cansaço no ar, amargura no chão
Há tristeza nas torres de gente
Há dureza nos olhos nos rostos nos punhos
Da multidão desconfiada

Isso não ajuda nada
Não ajuda mesmo nada

Trágico para esse doente, trágico para o médico que se queira consciente. À luz da desmoralizante lei de Murphy, categórica afirmação de que a probabilidade de ocorrência de um determinado evento é inversamente proporcional à sua desejabilidade (tão verdadeira que não se verifica quando antecipadamente nos lembramos dela), chegamos à agonizante conclusão de que nunca conseguiremos reconhecer a tempo o nosso pior doente, esse Manneken-Pis da espera hospitalar.

Porque será que ela teima em falhar
Quando afinal tudo podia ir bem
Se ao menos fosse possível saber
De que paragens o erro vem

Eu já falei de Ametite e da etnia Bijagó local aí para trás, esses dois estandartes universais de objectivação da entropia. Mesmo que a função de todo o ser vivo (dos unicelulares ao homem) seja contrariá-la, estes não querem saber. De todo. O Universo que faça o que bem entender, e coitado de quem passa as dores. Na minha primeira consulta em Ametite – que de consulta também teve pouco –, depois de 80 doentes e de 240 mentiras (a média é de três mentiras por doente, e corresponde de forma aproximada ao número de ideias emitidas por cada um), segui de noite com o Mustafá para a praia onde os restantes tinham montado acampamento, quebrado pela exaustão, com a mochila de chumbo às costas, duas galinhas na mão esquerda e a mão direita presa à grelha de trás da mota. Uma ou duas cobras passaram, como de costume, mas o cansaço já nem me deixou estranhar. Nem maré havia para um desejado (e desejável) banho de mar. Vesti os calções de praia (castanhos da incredulidade de terem sido feitos na China e comprados por um açoriano em Chamonix para se gastarem na Guiné), peguei no balde e no caneco, enchi o primeiro de iágu di lava corpu, sim, que a iágu di bíbi tem que se poupar, e fui adelgaçar a camada que me revestia e, enfim, lavar a alma, para um pedaço de areal mais remoto, à escassa luz que do setentrional horizonte anunciava Bissau. Medianamente recomposto, limpo em igual proporção, voltei às tendas, onde um aglomerado de pessoas se juntava à volta de uma criança mal iluminada por uma lanterna. Chamado assim que fui visto, pousei balde e caneco, e acorri à cena (“mas o que será desta vez?”). Uma criança com pouco mais de um ano, ao colo da avó, esticava-se em arco rígido de concavidade dorsal, de olhos atrás da fronte, como se tentasse ver os próprios calcanhares através do crânio, como se o cérebro e o resto do crânio já nem lá estivessem. “Eu vi esta criança na consulta!” – lembrar-me já não foi mau – “Porque é que ela foi à consulta? Mediquei com o quê?”. A mãe mostrou-me a medicação que tinha – antibiótico e paracetamol – o que instantaneamente me fez duvidar, sobretudo de mim. “Porque é que a criança foi à consulta? O que foi que me contou na consulta? Há quanto tempo isto está a acontecer?” – o espectro do erro e da possibilidade de ter deixado esta criança escapar entre os meus dedos para a morte asfixiava-me, e só a imperiosidade de ter que resolver alguma coisa nesta praia às escuras e a 18 horas de qualquer sítio que pudesse ajudar minimamente esta miúda – e de ser o único ali a poder fazê-lo, estivesse em condições ou não – não me retirou por completo a frieza necessária para refazer uma hipótese diagnóstica: “Ok: pensamos em Malária cerebral, cobrimos alguns agentes de Meningite, rezamos e fazemos figas”. Afastada a pressão da solidão na decisão, com o coração surdamente doloroso preso à entretanto estreita garganta, dali saí em passo incerto, sem conseguir pestanejar, até me sentar num canto mais longe da praia escura, onde pude – enfim – chorar até que se enxugasse o erro ao inevitável.

Será que existe algum bom movimento
Neste momento em que nada vai bem
Se ao menos fosse possível saber
De que paragens a culpa vem

“Olha, Luís, tu sabes que os Bijagós são mentirosos”, dizia ao jantar o Mustafá, sintonizando a angústia, “e para tua informação, esta criança está mal há mais de duas semanas, este problema tem há mais de uma, e a Mãe, por vergonha de não ter feito nada pela filha neste tempo todo, não te falou nestes ‘ataques’”. Sim, lentamente a memória emergia: febre, tosse e expectoração purulenta, e a observação clínica sugeria um quadro pneumónico. Seria “assaz aborrecido” explorar o diagnóstico diferencial aqui, mas a Malária não complicada, quando é causa de tosse, é normalmente de tosse seca. Por outro lado, a Malária grave pode-se fazer acompanhar de infecções oportunistas (de que uma Pneumonia é exemplo), e, a bem dizer, bem podia nem ser Malária. A única questão é que, se expectoração purulenta e o que ouvi à auscultação implicarem medicar com anti-maláricos, então tenho que medicar todos os doentes com anti-maláricos. E se calhar tenho, já nem sei... Enfim. A criança voltou para casa (que está muito longe do que se possa imaginar que uma casa é), com a promessa de voltar umas horas depois para mais medicação – interná-la na praia seria um pouco pior, achei. Mas, sim, enviei-a como se se pudesse garantir que sobreviveria, fraca probabilidade assente na resignação a uma circunstância de impotência. O facto é que voltou, deviam ser três ou quatro da manhã. Notícia de sabor insípido mas menos mau, não tinha voltado a exibir qualquer fenómeno neurológico. Conclusão dos pais: está tudo bem, já não precisa de ir para o hospital de Bolama, como tínhamos combinado. Um belíssimo raciocínio. “Tenham paciência: é tarde demais para falarmos, a menina volta de manhã para darmos mais medicação e logo falamos – mas preparem-se para ir”.

*Jorge Palma, in “Asas e penas”

Lost in translation VII

Estávamos – Sara e eu – com uns franceses na distante ilha de Orango a ver se encontrávamos uns hipopótamos. Instado a revelar o meu nome, saiu-me o já automático Kriol:

- Ami Luís.
- Je m’appelle Didier, Amiluis. Enchanté!

Volta, Suleimane, que estás perdoado!

Berne IV

Lembrei-me disto no outro dia. Contava com controlada náusea ao meu Pai o facto de ter ovos de insecto na pele, desgastado com a tamanha ironia de o inimigo-mor se multiplicar no meu próprio corpo, à procura de alguma solidariedade paternal, que não se tardou a manifestar:

- Isso é como nas vacas.

Ora muito obrigado. Não era preciso tanto.